A fazer fé nos meteorologistas, a onda de calor que, durante dias, nos fez sentir como se andássemos de viagem por Marraquexe ou por Tunis, chegará - por agora - a um momento de "rebentação". Ou de recessão, como preferirem. Tal não invalida que continuemos a suar, a aceitar como uma bênção a necessidade de hidratação, a procurar refúgio nas brisas (quando se manifestem...), nas ventoinhas e nos leques, mais do que nos ares condicionados, tantas vezes traiçoeiros. Para muitos, o "consumo" de cultura não tem relação direta com a sazonalidade. Confesso o pecado de não pensar exatamente assim e, prova corriqueira disso mesmo, está o facto de, durante anos, ter cumprido um ritual de descompressão e de pura alegria no dia preciso em que começavam as férias: escutar e cantarolar o clássico Tarde em Itapoã, entregue pelas vozes de Vinicius de Moraes e de Toquinho. Valia como um hino de abertura a tudo o que escapava ao longo dos meses de trabalho ou de aulas. Inspiradamente: "Um velho calção de banho / O dia pra vadiar / Um mar que não tem tamanho / Um arco-íris no ar." Perfeito. Nem sequer o contacto real com a praia próxima de Salvador, Baía, Brasil, suja e descuidada, conseguiu esbater a via rápida que a cantiga proporciona em direção ao cenário ideal. Talvez por isso, a bossa-nova - de Nara Leão a Stan Getz, mas sempre com Tom Jobim e João Gilberto - se transformasse no género eleito para o verão. Ou até para uma qualquer e convicta "aspiração estival"..Um amigo meu era muito mais fundamentalista nestas matérias: apesar das reposições no cinema coincidirem, muitas vezes, com os meses de calor, ele sempre se recusou a descobrir o filme Lawrence da Arábia, o épico subtil de David Lean, nessa época do ano. Esperou pacientemente por um encontro que lhe permitisse, concluída a projeção, sair da sala e dar de caras com a chuva, o vento e o frio. Seguindo esse voto, também se resignou a verA Marcha dos Pinguins, o documentário "familiar" de Luc Jacquet quem tem por estrelas os animaizinhos da Antártida, em suporte DVD, com a sessão obviamente programada para o verão..Sigo-lhe os passos, isso sim e em muitas ocasiões, no que toca à escolha dos livros. Por isso me atrevo a referir dois que me passaram recentemente pelas mãos e pelos olhos, ambos contrastando com este tempo de mais liberdade (nem sempre real), de maior ociosidade (para quem possa...), de uma diferente e mais distendida abordagem de espaço e tempo. Qualquer deles nos leva a mergulhar na dramática - e potencialmente trágica - condição daqueles que são aprisionados sem razão direta e veem alterada, de forma radical, a respetiva vida, até por não saberem quanto tempo mais ela vai durar....O primeiro, mais recente, é O Fogo Será a Tua Casa (ed. D. Quixote), de Nuno Camarneiro (declaração de interesses: sim, bem sei que é colunista do DN - e daí?). A inquietação, mais do que a aventura, leva o próprio escritor a um país islâmico, onde acaba por ser raptado e atirado para uma cela, em mistura súbita com as outras personagens. Inteligente, agreste, tolerante - na medida do possível, dada a situação extrema -, é de uma enorme intensidade e de uma contagiante profundidade. O outro, que deveria ser leitura indispensável em qualquer escola de jornalismo, é de Gabriel García Márquez - Notícia de Um Sequestro, originalmente publicado em 1996, é um relato superlativo, até porque real, dos tormentos e contradições porque passam dez pessoas raptadas no princípio dos anos 90 do século passado às mãos de Pablo Escobar. Dizer que o autor de O Amor Nos Tempos de Cólera recupera, em pleno, a sua veia de repórter parece curto: o livro é magistral, angustiante e despreconceituoso, sem deixar de tomar posição. Como, afinal, acontece com as melhores reportagens narrativas. A vantagem de os ler agora é que, chegados ao fim, podemos sempre respirar fundo, levantar a vista e mergulhar, no mar ou na bebida fresca "à escolha do freguês". Com a certeza reforçada de que o verão não é obrigatoriamente pateta.