Pode uma história surreal transformar-se no expoente máximo do surrealismo? O caso de Tancos pode. E suspeito de que ainda estamos longe - muito longe - do limite..Um ano e quatro meses depois, o país tem hoje mais dúvidas do que certezas sobre o desaparecimento de armas de guerra de um paiol militar. E, estranhamente, quanto mais notícias e declarações públicas ouvimos sobre este caso, mais baralhados ficamos..As perguntas mais importantes continuam todas por responder: quem roubou? Será que roubou? Porque roubou? Quem foram os cúmplices? Onde estão as armas que ainda não foram encontradas? E, mais importante ainda, qual foi, afinal, o propósito de tudo isto?.Nenhuma destas perguntas tem resposta definitiva até agora. E o que sabemos - ou julgamos saber - sobre o alegado encobrimento levado a cabo pela Polícia Judiciária Militar é alguma coisa, mas é curto - muito curto - para chegarmos a conclusões definitivas..Ainda assim, nas últimas semanas, uma outra pergunta parece ter-se sobreposto a todas as outras: o que sabiam e o que sabem o Presidente da República e o primeiro-ministro? Já não apenas sobre o encobrimento, mas sobre tudo. Como se esta resposta nos fizesse sair das trevas e nos levasse até à luz. Como se o papel do Presidente da República e do primeiro-ministro não fosse estarem informados e bem informados (não sobre o encobrimento quando ainda era desconhecido, claro - caso contrário, seriam cúmplices de um crime). Como se uma matéria tão sensível como esta, em que está em causa a segurança nacional, pudesse ser discutida na praça pública, aos microfones da comunicação social, de ânimo leve..As responsabilidades pelo triste espetáculo a que o país tem assistido nas últimas semanas têm de ser repartidas. A começar pelo PSD e pelo CDS, que, à falta de melhor agenda política, se agarraram ao tema de Tancos como se a sua sobrevivência política dependesse disso. Mesmo sabendo que vem aí uma comissão parlamentar de inquérito - e bem - que todos os partidos subscreveram e que tem como objetivo, precisamente, apurar eventuais responsabilidades políticas..A própria comunicação social - da qual faço parte - também não está isenta de responsabilidades. É que uma coisa é questionar, investigar, apurar o que aconteceu, mesmo que com base em fontes anónimas. Uma coisa é dar conta dos factos, enquadrá-los, explicá-los e deixar que as pessoas retirem deles as suas próprias conclusões. Outra, bem diferente, é partir de um facto para criar uma perceção pouco sustentada na opinião pública. Obrigando assim à reação dos protagonistas políticos e criando novos "factos" que só acrescentam mais ruído ao processo..E aqui reside parte substancial do problema. Ao Presidente da República e ao primeiro-ministro devem exigir-se explicações políticas, claro. Mas exige-se também algum recato e contenção nas declarações públicas que fazem sobre um assunto com esta sensibilidade. Exceção feita - e até prova em contrário - à postura do novo ministro da Defesa, que parece estar nos antípodas do seu antecessor e tem demonstrado um enorme sentido de Estado nas declarações que fez até ao momento..E assim, um ano e quatro meses depois, sobram quase todas as perguntas que eram feitas no dia em que o país soube do assalto. Mas fica-nos uma certeza: muitos daqueles em quem devíamos confiar quebraram - de forma remediável, espero - a nossa confiança..Os jogos de poder, a que alude o Presidente da República, ajudam, de facto, a explicar grande parte desta triste história. Começam por explicar, por exemplo, o braço-de-ferro entre a Polícia Judiciária Militar e Polícia Judiciária civil. O facto de os militares não terem retirado consequências mais cedo e de o chefe de Estado-Maior do Exército só se ter demitido quando foi literalmente empurrado pelo novo ministro da Defesa explicam a permanência de Azeredo Lopes no cargo de ministro da Defesa durante tanto tempo - até cair de podre, não sem antes contaminar o governo do qual fazia parte..São os jogos de poder que nos ajudam a enquadrar os memorandos, as conversas, os telefonemas e as mensagens trocadas entre os vários protagonistas desta história. Chefes de gabinete, de casas civis, chefes disto e daquilo. Todos eles, aparentemente, sabiam - e sabem - coisas e todos eles terão usado essa informação para alimentar o seu pequeno poder..Os jogos de poder explicam - e de que maneira - as fugas seletivas de informação para a comunicação social, com o claro propósito de criar cortinas de fumo e de sacudir responsabilidades. E explicam ainda a chicana política, tantas vezes disfarçada de oposição, a que temos assistido..Sim, eu acho que o Presidente da República, o primeiro-ministro e o ministro da Defesa não nos estão a contar tudo. Tenho, aliás, muita esperança de que eles, neste caso, o estejam a fazer. Espero que estejam informados - bem informados - e que apresentem explicações ao país quando a informação de que dispõem estiver confirmada e puder ser revelada. Mas também espero que tudo o que tenha que ver com segurança nacional seja cuidadosamente tratado pelo governo e pela Presidência da República. Que a separação de poderes funcione. Que a justiça possa fazer o seu trabalho e que a política saiba retirar todas as consequências políticas quando, e só quando, souber, de facto, o que aconteceu..Bem sei que a espera é penosa. Mas não precisamos de a tornar ainda pior, com este espetáculo deprimente a que o país tem assistido.