As notícias dos desaparecimentos de Renato Marchiaro e Sergio del Pinto, ambos em 2017, não encontraram eco em Portugal, mas estes dois nomes merecem um apontamento na história do futebol português como os pioneiros de uma rara presença italiana nos relvados do campeonato nacional. Dois sobreviventes da II Guerra Mundial, Marchiaro e Del Pinto aterraram em Portugal no início da década de 1950 e permaneceriam como os únicos futebolistas italianos a atuar na primeira divisão lusa até bem perto do final do século XX, quando Ivone de Franceschi veio ajudar o Sporting a interromper 18 anos de jejum, na época 1999/ 2000..A partir daí, o século XXI e a acelerada globalização futebolística trouxe mais alguns calciatori até ao campeonato nacional. Mas, ainda assim, Itália está longe de ser um fornecedor habitual de matéria-prima para as equipas do futebol português. E ainda menos no que respeita a jogadores que deixem grande marca por cá. Historicamente, foram 15 os jogadores italianos a jogar pelo menos um minuto na Liga portuguesa. Só dois conseguiram ser campeões, e desses só De Franceschi foi relevante para o título, o tal conquistado pelo Sporting a fechar o século XX..O outro italiano campeão português, Bryan Cristante, figura secundária nos dois últimos títulos do recente tetra do Benfica, está agora de regresso a Portugal, fazendo parte da equipa da Roma que quarta-feira defronta o FC Porto no Dragão com um lugar nos quartos-de-final da Liga dos Campeões em jogo - os portistas têm de recuperar de uma desvantagem de um golo trazida da capital italiana: 2-1. Uma oportunidade para viajarmos no tempo em busca das marcas deixadas por jogadores italianos no futebol português, onde esta época, por exemplo, não se chegou a estrear sequer Emiliano Viviano, guarda-redes que deixou o Sporting em janeiro depois de meio ano sem oportunidades..Os pioneiros Marchiaro e Del Pinto.Recuemos então até aos inícios da década de 1950, anos em que a Europa procurava reerguer-se do caos provocado pela II Guerra Mundial e a Portugal chegaram dois sobreviventes italianos do conflito que, só em Itália, fez mais de 470 mil vítimas mortais. E tanto Renato Marchiaro como Sergio del Pinto chegaram com memórias vivas da guerra para contar..O primeiro a aterrar, em Lisboa, foi Marchiaro, um antigo jogador da Juventus que veio representar o Belenenses na época de 1950/51. Atacante que se estreou pela Vecchia Signora aos 19 anos, em 1939, Marchiaro viu a carreira interrompida pela Guerra pouco depois. Entre 1943 e 1945, fez parte das brigadas da Resistência italiana na zona de Boves, numa altura em que a Itália se viu ocupada pela antiga aliada Alemanha nazi, nos anos finais do conflito.."Fede", nome de guerra como oficial da 177.ª Brigada Garibaldi, foi um dos poucos sobreviventes. Voltou todos os anos a Boves para a homenagem às vítimas da II Guerra, até morrer, no dia de Natal de 2017, aos 98 anos..Retomou a carreira em França, depois dos anos de conflito, e chegou a Portugal em 1950 para jogar no Belenenses ao lado de nomes como Pedroto e os defesas internacionais Feliciano e Serafim Neves. Ficou apenas uma época, na qual marcou dois golos, mas levou várias histórias extrafutebol para contar, desde um encontro com o exilado rei Humberto II (o último rei de Itália) a um azulejo autografado que lhe terá sido oferecido por Amália Rodrigues, segundo se lê numa biografia de Renato Marchiaro no site do historiador Sergio Dal Masso, onde deixa ainda grandes elogios à cidade de Lisboa, cuja "Grande Avenida" considerava "mais bonita do que os Champs Elysees"..Marchiaro, que marcou dois golos com a camisola do Belenenses, segundo dados disponíveis no site zerozero.pt, acabou a carreira em França e radicou-se em Nice, onde abriu um hotel. E onde acabou por morrer..Ainda nos anos 50 do século passado chegou a Portugal também Sergio Del Pinto, para jogar no FC Porto. Outro sobrevivente da II Grande Guerra, durante a qual esteve preso no campo de concentração de Helmbrechts, na Baviera, por se recusar a lutar entre as tropas alemãs, tal como aconteceu com muitos outros futebolistas italianos. Filho de um abastado comerciante de carnes, Del Pinto foi formado na Lazio, clube da capital, nos anos anteriores ao conflito e foi chamado à primeira equipa quando o final da guerra permitiu o retomar das competições. "Quando regressei do campo de concentração, o treinador, um austríaco, chamou-me a casa e disse que eu ia fazer parte da primeira equipa", recordava ao La Repubblica, em 2016, meio ano antes de morrer..Sem se impor na no futebol italiano, lançou-se à aventura no estrangeiro e partiu para a Catalunha, onde foi o primeiro estrangeiro da história do Lleida e um dos primeiros italianos também no futebol espanhol. Passou ainda pelo Espanhol de Barcelona antes de chegar à cidade Invicta. No FC Porto, o médio viveu três temporadas, mas só na primeira, em 1953-54, fez dois jogos no campeonato: frente a Lusitano de Évora e Sp. Braga. Manteve-se nas reservas até 1955-56, terminando aí a carreira..Da sua vida sabe-se que ainda foi selecionador da Somália, no início dos anos 1970, mas uma doença obrigou-o a regressar a Roma, onde tinha montado uma pequena loja de reparações elétricas na zona de Testaccio, com as poupanças de futebolista, a qual manteve até morrer, em janeiro de 2017..De Franceschi, um campeão no fim do jejum do Sporting.Foram precisos quase 50 anos para o campeonato português voltar a ter um italiano no relvado, quando Ivone De Franceschi, um esquerdino nascido em Pádua, veio para Lisboa, onde nasceu o franciscano Santo António que une as duas cidades, vestir a camisola do Sporting..O extremo veio cedido pelo Veneza e recomendado pelo treinador italiano Giuseppe Materazzi, aposta do Sporting para essa época. O técnico não resistiria mais do que um par de meses, mas o então jovem futebolista italiano ficou até final para ajudar a equipa leonina, depois sob o comando de Augusto Inácio, a acabar com o maior jejum de títulos da sua história (18 anos). E contribuiu com três golos para esse título que fechou o século XX do futebol português, tornando-se assim o primeiro futebolista italiano a ganhar o título de campeão português. No final da época regressou a Veneza..Schelotto foi o mais utilizado.O legado de De Franceschi não deixou propriamente raízes em Alvalade, mas nos últimos anos voltou a ser o Sporting, dos três grandes, o clube que mais abriu portas a jogadores italianos. Entre eles, Ezequiel Schelotto, lateral nascido na Argentina mas com dupla nacionalidade graças a antepassados italianos, que chegou a Portugal em novembro de 2015, depois de terminado o vínculo com o Inter de Milão..Internacional italiano, Schelotto rapidamente conquistou o seu espaço e fez uma boa segunda metade de época sob o comando de Jorge Jesus, continuando a ser bastante utilizado na temporada seguinte. O que faz dele o representante do calcio com mais minutos jogados na Liga portuguesa, num total de 2959 minutos repartidos por 37 jogos..Por Alvalade passaram também, nas últimas épocas, outro lateral direito, Piccini, que fez 24 jogos na época passada, e Aquilani, médio com um currículo assinalável que inclui a formação na Roma e passagens por Liverpool, Milan e Fiorentina antes de ter vestido a camisola do Sporting, em 2015/16. Apesar de não ter sido muito utilizado no campeonato, onde só por cinco vezes foi titular, ainda conseguiu fazer três golos na Liga (e cinco no total da época)..O bombardeiro Miccoli.Foi a Luz a acolher os primeiros italianos do século XXI no futebol português. E se do lateral esquerdo Emanuele Pesaresi não reza muita história para lá dessa, com 11 jogos na época 2001/02 e uma expulsão na estreia (Varzim) e outra na despedida (Boavista), já do signore que se seguiu ficou gravada a memória de um pequeno mas explosivo bombardeiro sempre pronto a causar estragos nas defensivas contrárias..O piccolo Miccoli chegou cedido pela Juventus, em 2005/06, e fez jus ao estatuto de "rato de área". Com 1,68 metros plenos de talento e hiperatividade no ataque, Fabrizio figura fulcral na equipa de Ronald Koeman que chegou aos quartos-de-final da Liga dos Campeões nessa temporada e prolongou o empréstimo por mais um ano, o que lhe permitiu jogar ainda com Rui Costa, com quem se tinha cruzado em Itália. No final, deixou saudades nos adeptos benfiquistas e um pecúlio de 14 golos em 39 jogos no campeonato, o que faz dele o cannonieri (melhor goleador) italiano do futebol português..O desastre em Olhão.Em graves dificuldades financeiras e salvo in extremis, por um ponto, na época anterior, o Olhanense colocou-se nas mãos de investidores italianos no arranque da época 2013-14, o que levou a que o clube algarvio, campeão de Portugal em 1923-24, se tornasse uma espécie de campo experimental do calcio no futebol português..Com o dinheiro vieram também alguns jogadores e até um técnico italiano (Galderisi, a meio da época, depois de Abel Xavier ter começado a aventura e Paulo Alves a ter tentado continuar). Formou-se então uma espécie de clã transalpino inédito na história da Liga portuguesa, com Olhão a acolher nomes como Federico Dionisi, Mirko Bigazzi, Mario Sampirisi ou Daniel Bessa, jogadores de cartel secundário no calcio e que não evitaram o desastre: o Olhanense caiu da I Liga e hoje, ainda sob investimento italiano, luta para se reerguer no Campeonato de Portugal..Desse grupo de jogadores que passou pelo Algarve em 2013-14, destacou-se o avançado Dionisi (hoje no Frosinone), que ainda fez o gosto ao pé por oito vezes..Osvaldo, o polémico roqueiro do golo.No FC Porto, depois de Sergio del Pinto, foi preciso esperar 60 anos até ver outro italiano vestir a camisola dos azuis e brancos. O nome de Pablo Osvaldo garantiu impacto mediático e um aumento considerável de seguidore(a)s, mas não propriamente rendimento futebolístico, na curta passagem do avançado pelo Dragão, em 2015..Bad boy com uma coleção de aventuras para desfilar por meio mundo, o avançado nascido na Argentina mas internacional por Itália (14 jogos/4 golos) chegou ao Porto depois de já dez clubes percorridos em quatro países diferentes (Argentina, Espanha, Itália e Inglaterra)..Com uma história que misturava golos com polémicas fora do relvado - como a agressão, à cabeçada, ao português José Fonte, que o fez sair do Southampton -, Osvaldo chegou a Portugal já cansado do futebol, com confessaria pouco depois. No FC Porto aguentou apenas quatro meses, até ao natal de 2015, e despediu-se do campeonato nacional com uma expulsão frente ao União da Madeira, deixando um golo ao Belenenses como magro pecúlio..Regressou à Argentina para terminar a carreira no Boca Juniors, depois de o treinador o apanhar a fumar no balneário, e se dedicar à sua grande paixão: o rock. Hoje é um dandy roqueiro, vocalista dos Barrio Viejo. "O Cristiano Ronaldo gosta de chegar a casa e fazer 150 abdominais; eu gosto de acender o lume para fazer um churrasco", disse, já depois de retirado do futebol, para justificar ter voltado as costas à modalidade..Osvaldo terá vivido, curiosamente, os seus anos mais felizes como futebolista na Roma, tendo marcado 28 golos em duas épocas ao serviço da equipa que esta quarta-feira visita o Dragão com outro dos italianos do futebol português na comitiva: Bryan Cristante, o médio bicampeão pelo Benfica, recomendado por Rui Costa, mas que poucas oportunidades teve na Luz. Hoje é um dos habituais titulares da equipa treinada por Eusebio di Francesco..A lista dos italianos no campeonato português.Ezequiel Schelotto (Sporting) Lateral direito 2015/16 e 2016/17 37 jogos, 2959 minutos.Fabrizio Miccoli (Benfica) 2005/06 e 2006/07 39 jogos, 2842 minutos, 14 golos.Cristiano Piccini (Sporting) 2017/18 24 jogos, 2086 minutos,.Federico Dionisi (Olhanense) 2013/14 24 jogos, 2050 minutos, 8 golos.Ivone De Franceschi (Sporting) 1999/2000 [campeão] 25 jogos, 1475 minutos, 3 golos.Mario Sampirisi (Olhanense) 2013/14 11 jogos, 885 minutos.Emanuele Pesaresi (Benfica) 2001/02 11 jogos, 709 minutos.Alberto Aquilani (Sporting) 2015/16 19 jogos, 652 minutos, 3 golos.Renato Marchiaro (Belenenses) 1950/51 7 jogos, 630 minutos, 2 golos.Mirko Bigazzi (Olhanense) 2013/14 12 jogos, 469 minutos.Pablo Osvaldo (FC Porto) 2015/16 7 jogos, 263 minutos, 1 golo.Sergio Del Pinto (FC Porto) 1953/54 2 jogos, 180 minutos.Bryan Cristante (Benfica) 2014/15 [campeão] e 2015/16 [campeão] 7 jogos, 128 minutos.Tommaso Berni (Sp. Braga) 2011/12 1 jogo, 90 minutos.Daniel Bessa (Olhanense) 2013/14 1 jogo, 13 minutos.Ordem segue os minutos de jogo na Liga portuguesa