Fungos amorosos

Um pedaço de bolo confecionado há mais de oitenta anos para um famoso casamento pode ter chegado intacto aos nossos dias?
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Foi há algum tempo, antes de a pandemia tomar conta do noticiário. A Sotheby's, casa de leilões em Nova Iorque, ao leiloar os bens do falecido Duque de Windsor, conseguiu arrancar a enormidade de quinhentos mil dólares por um pedaço de bolo de casamento. Não, você não leu errado. Mas não era um bolo comum, e também não era um casamento comum. Era simplesmente o bolo do notório casamento do Duque de Windsor com Wallis Simpson, que custou ao noivo nada menos do que um trono - o da Inglaterra. Detalhe: o leilão foi outro dia, mas o casamento, com bolo, champanhe e petiscos, foi, como se sabe, em 1937.

Os compradores do pedaço de bolo foram um casal de jovens americanos de origem chinesa, Benjamin e Aman Yin. Não é romântico? Muito. Principalmente porque o casalzinho arrematou o dito pedaço de bolo no escuro, ou seja, sem o ver. O objeto estava guardado numa caixa lacrada que, por algum motivo, não podia ser aberta durante o leilão. A Sotheby's deu a sua palavra de que ali havia um pedaço de bolo - e quem vai duvidar da palavra da Sotheby's? -, mas só não podia jurar pelo seu estado. Talvez ainda estivesse sólido, até petrificado, mas poderia também ter virado farelo e a caixa abrigasse uma gorda colónia de fungos, todos com o colesterol nas alturas. Quem o arrematasse teria de confiar na garantia da Sotheby's, de que, um dia, o casal mais famoso de sua época comera daquele bolo e que a caixa continha o que restara dele.

Algumas considerações. É evidente que, ao ver sobrar um pedaço de bolo do seu falado casamento, o casal Simpson-Windsor não iria levá-lo para a lua-de-mel. E nem aquele foi o único bolo da receção, mas um dos muitos que foram servidos aos convidados. Ao ver que um deles não tinha sido consumido por inteiro, algum funcionário da cozinha ou do protocolo o guardara, como um souvenir daquele momento histórico - e, quase um século depois, ele ressuscitaria na maior casa de leilões do mundo.
Para a Sotheby's, que não esperava arrecadar mais do que reles cinco mil dólares por aquele lote, foi uma surpresa. Os lances começaram a se suceder e, quando chegaram a quinhentos mil dólares, os outros concorrentes desistiram e o casal chinês levou o troféu.

Fico imaginando o histórico desses jovens compradores. Deviam estar muito apaixonados. A garota certamente era de família aristocrática, descendente de alguma dinastia chinesa do ano 3000 a.C., que, nesses séculos todos, perdeu tudo, ficou pobre e conservou somente o nome ilustre. Já o rapaz devia ser um deslumbrado emergente social, cujo pai começou como tintureiro na Chinatown de Nova Iorque e, depois, se tornou um polvo da pirataria eletrónica em Pequim. Para impressionar a rapariga e provar que tinha classe e elegância, o moço prometeu-lhe um presente de casamento à altura das tradições da nobreza ocidental. E que melhor nobreza, apesar dos pesares, do que a inglesa?

Ao saber que a Sotheby's ia leiloar objetos do lendário Duque de Windsor, ele não hesitou. Desprezou as outras ofertas do leilão, como uma escrivaninha Luís XV que pertencera ao próprio Luís XV, armaduras atribuídas a Joana d'Arc e as dentaduras postiças de George Washington, e concentrou-se no que lhe parecia mais romântico: um pedaço do bolo do casamento que a Família Real inglesa tentou proibir.''

Afinal, era uma relíquia da maior história de amor do século XX: a do príncipe Eduardo VIII - sim, filho de Eduardo VII -, que abdicou da coroa da Inglaterra por uma plebeia conhecida internacionalmente pela vida airosa, ainda por cima divorciada, e, como se não bastasse, americana. Pois, para se casar com essa mulher, detestada pela Família Real, Eduardo VIII largou tudo para trás e partiu para o exílio com um reles título de Duque. Não importa que ele só tenha se casado com Wallis porque, segundo dizem, ela era a única mulher com quem ele conseguia mais ou menos funcionar. O importante foi o gesto - e que objeto pode simbolizar melhor esse gesto do que o bolo cortado pelos dois amantes, com suas mãos trémulas de champanhe e paixão?

Sim, eu sei, você deve estar a se perguntar: será possível a um bolo se conservar durante tantas décadas? Afinal, ele saíra do forno havia mais de oitenta anos! Um bolo, mesmo um bolo real e confecionado para um casamento tão sublime, é feito com os mesmos ovos, leite, farinha, manteiga, fermento, açúcar e baunilha dos casamentos plebeus e sem amor. Todos esses elementos são miseravelmente perecíveis e, por mais que alguns ingleses sejam mestres em confeitaria, é difícil de acreditar que, tanto tempo depois, não se tenha transformado numa múmia de bolo. A favor do bolo, diga-se que o Duque e a Duquesa não envelheceram muito melhor.

Bem, o jovem casalzinho chinês arrematou a preciosidade, pagou à vista e levou para casa a caixa com o hipotético pedaço de bolo. As agências de notícias não informaram se a caixa foi aberta ali mesmo, ao fim do leilão, diante de um bando de gente compreensivelmente curiosa. O mais provável é que o casalzinho tenha reservado a abertura para um momento solene no seu próprio lar. Pois, se foi assim, só há duas hipóteses.

Primeiro: o bolo estava intacto e, nesse caso, o amor é lindo. Segunda: os fungos já tinham comido todo o bolo, do qual não restou nem um grão, mas o casal jamais dará a satisfação de admitir que seu sonho se frustrou.
E, mesmo nesse caso, o amor também será lindo.

Jornalista e escritor, autor de Carnaval no Fogo - Crónica de Uma cidade Excitante demais, sobre o Rio (Tinta-da-China).

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