O alargamento político nunca existiu

A hegemonia do núcleo fundador e o choque entre instituições são as principais ilações a tirar desta corrida aos lugares de topo na UE. Que impactos políticos podem gerar a curto prazo? Que efeitos na dinâmica comunitária? E o que importa acautelar?
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A União Europeia (UE) pode ainda ter 28 Estados membros, mas são os seis fundadores quem determina todos os arranjos de poder nas instituições comunitárias. Esta é a primeira lição à saída do último Conselho Europeu e dos nomes ali aprovados. Basta olharmos para a história europeia, contabilizando já os atuais nomeados. Dos 21 presidentes da Comissão Europeia ou dos órgãos que lhe antecederam, apenas dois não pertenciam ao núcleo de fundadores (Barroso e Roy Jenkins). Dos 31 presidentes do Parlamento Europeu ou das assembleias que lhe deram origem, apenas seis não eram nacionais dos países fundadores (Pat Cox, Jerzy Buzek, Josep Borrell, Plumb, Barón Crespo e Gil-Robles). Dos três presidentes do Conselho Europeu, apenas um não pertencia a esse grupo (Tusk). Por fim, os três presidentes na história do Banco Central Europeu foram todos naturais desse diretório. Christine Lagarde cumpre novamente o requisito.

Pode-se, legitimamente, tirar duas conclusões destes dados. A primeira é que o alargamento, enquanto desígnio político de primeira grandeza na integração europeia, nunca chegou às principais lideranças das instituições, decapitando a ideia de uma verdadeira representatividade geográfica da tal Europa "whole and free", com que o presidente George H. Bush, no célebre discurso de Mainz, em maio de 1989, cunhou o trajeto comunitário seis meses antes da queda do Muro de Berlim. Por outras palavras, falta ainda muito na UE para passarmos do alargamento geográfico ao alargamento político.

A segunda conclusão está na forma corporativa com que o núcleo fundador olha para a política europeia: receoso de partilhar palco, agarrado à fórmula centralista do pós-guerra, incapaz de fazer cedências em nome dos novos equilíbrios, como se o certificado de legitimidade para ocupar esses altos cargos derivasse apenas do passaporte. Este medo em relação ao resto da Europa é o mesmo que a Europa parece projetar em relação a tantas dinâmicas da globalização. Talvez não seja à toa que, na Comissão Juncker, os três comissários mais corajosos e com maior mérito em projetar o poder da UE na globalização estavam fora desse diretório de fundadores: a sueca Cecilia Malmström (Comércio), a dinamarquesa Margrethe Verstager (Concorrência) e o português Carlos Moedas (Inovação, Ciência e Investigação).

A segunda grande lição à saída deste Conselho Europeu espelha o choque entre esta instituição e o Parlamento Europeu, ou seja, entre o poder das decisões dos Estados e a força da legitimidade do processo dos candidatos à Comissão Europeia apresentados nas eleições de maio (Spitzenkandidat). O resultado desta tensão, que não é nova, foi a completa desvalorização de um processo defendido pelo Parlamento Europeu como reserva exclusiva, numa tentativa de reforçar o escrutínio parlamentar sobre a Comissão e o Conselho. Para o Parlamento, os nomes saídos do último Conselho Europeu mataram o mecanismo de eleição para o presidente da Comissão, iniciado em 2014 com Juncker.

Em parte, isto é verdade, mas não esgota toda a explicação. Na prática, o que o Conselho fez foi, antes de tudo, vetar com estrondo a escolha em Manfred Weber feita pelo PPE em Congresso, um dos maiores erros de casting na história da política europeia (e não foram poucos), parlamentar medíocre e sem qualquer experiência governativa. Antes de o Conselho o ter feito, já o PPE tinha matado o Spitzenkandidat. Com todas as sondagens a dar a família conservadora como a maior bancada, Weber seria sempre um candidato a presidente da Comissão não aceite à partida por liberais e social-democratas. Qual seria a previsível moeda de troca do PPE? Inviabilizar de imediato Frans Timmermans, deixando ou a Verstager ou a um outsider o espaço para se constituírem como solução. A última hipótese foi várias vezes suscitada nesta coluna e aquela que em Bruxelas mais vi levantada nestes meses de encontros, reuniões e conferências que lá tive. Nem sequer os deputados do PPE com quem falei mostraram alguma crença no processo do Spitzenkandidat.

O desenlace deste ciclo levanta dois problemas imediatos. O primeiro é a sensação junto dos eleitores de que tudo não passou de um embuste. Ou o processo tinha o mínimo de credibilidade para chegar a bom porto - um dos candidatos nomeado pelo Conselho - ou então mais valia baixar as expectativas e assumir as limitações em cima da mesa. É de logro em logro e de expectativa defraudada em expectativa defraudada que a já intermitente relação de confiança entre eleitores e decisores europeus um dia parte de vez. O segundo problema está na previsível resposta que o Parlamento Europeu tenderá a dar quando Ursula von der Leyen se submeter a votação daqui a duas semanas. Pode até ser aprovada, mas as bancadas venderão caro o endosso, criando desde o início a grelha de relacionamento mútuo. Derrotada, acentuará a crise no interior da coligação alemã, podendo esta ser o grande dano colateral deste processo. Aprovada, não terá qualquer estado de graça, o que eleva a responsabilidade da nova Comissão para lidar corretamente com as crises de coesão interna e a pressão geopolítica exterior, e também para constituir o colégio de comissários à altura dos desafios, todos indicados pelos governos nacionais. Não só não vai ser tarefa fácil aceitar os nomes vindos da Polónia, da Itália ou da Hungria, como todos terão de ser aprovados pelo Parlamento Europeu, cujo escrutínio será, espera-se, ainda mais apertado do que anteriormente. Este é o lado bom da questão: maior rigidez com nomes afetos a governos em regime contínuo de atropelamento democrático. O lado mau é que o processo pode arrastar-se no tempo, desfasando a entrada em funções da nova Comissão do calendário do Brexit.

A UE precisa de capacidade política e de autoridade moral para tornar a integração a solução dos problemas europeus, evitando ser percecionada como uma entropia ao seu dinamismo. Vale a pena, por isso, lembrar aos mais distraídos que nos últimos dias foi eleita uma deputada do partido do senhor Orbán, supostamente suspenso pelo PPE, para uma das vice-presidências do Parlamento Europeu. Um dia, quando a bizarria for a regra na Europa, pode já ser tarde para salvá-la.

Investigador universitário

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