Um banco central, como o Banco da Inglaterra ou o Banco Central Europeu (BCE), existe para gerir as moedas nacionais ou das uniões monetárias. Nessa gestão, tem de se preocupar com o controle da inflação e, seguindo teorias já com algumas décadas, mas em que muitos ortodoxos não querem acreditar porque não lhes convém, com a correcta gestão da moeda de que as economias necessitam para a actividade corrente. Perante essas duas funções, natural tem sido que haja um determinado grau de coordenação política entre bancos centrais e governos nacionais, pois são funções em que diferentes políticas se cruzam. Essa coordenação nem sempre existiu com a mesma força, por esse mundo fora, e houve ocasiões de conflito entre governos e bancos centrais, mas era uma das garantias da correcta gestão da política monetária, financeira e económica..Entretanto, algures na década de 1990, por razões que têm que ver com aquelas ideias a que muitos gostam de chamar "neoliberais" (mas que no fundo não são mais do que pretextos de concentração de poder económico e que de liberais pouco ou nada têm), começou a surgir uma onda a defender que os bancos centrais deveriam ser independentes dos governos. Por outras palavras, tratava-se de pôr na mão de instituições sem controlo democrático a gestão de uma parte importante das políticas nacionais. Não faz sentido nenhum, claro, mas o poder económico transformado em poder político consegue vender bem as ideias que quer, incluindo estas. E muita gente acreditou mesmo que bancos centrais afastados dos governos controlavam melhor a inflação (que foi grave nos anos 1970 e 1980, mas não depois) e - pelo que até agora se disse, já não devia haver lugar para espanto - o crescimento económico. Claro que estas ideias se venderam melhor junto de eleitorados menos informados, com instituições mais recentes e menos consolidadas, como o português, onde foram levadas o mais longe possível. Em países institucionalmente mais avançados, como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha ou a Suécia, elas não tiveram tanto sucesso e os governos mantiveram algum controlo sobre os respectivos bancos centrais, tal como devia ser. A Alemanha às vezes aparece como um caso à parte, antes do euro, mas não o foi. Não havendo aqui espaço para explicar tudo, basta recordar que o banco central alemão foi criado pelos EUA, logo a seguir à Segunda Guerra Mundial..Entretanto, no meio desta história, surgiu o Banco Central Europeu, o gestor da política monetária dessa união que tarda em ser o sucesso que deveria ser. O BCE, como sabemos, nasceu o mais independente possível de qualquer governo, até porque o governo "europeu" pouco o era, nos idos anos 1990 e 2000, e ainda pouco o é. Dizem-nos que o BCE nasceu à imagem do banco central alemão, mas isso é tanto verdade como dizer que a Comunidade Económica Europeia nasceu à imagem de Carlos Magno. Na verdade, o BCE nasceu à imagem das ideias "neoliberais", as tais que de liberal pouco têm..Pelo meio ainda, os bancos centrais foram ganhando ou consolidando competências, incluindo a de supervisionar os bancos comerciais e outras instituições financeiras. Estava para se ver o resultado: bancos centrais cada vez mais fora da alçada dos governos a vigiar bancos de que dependiam para a prossecução dos objectivos monetários. Assim, em muito sítio, deu-se a transferência da dependência perante os governos para a dependência perante os presidentes e os conselhos de administração dos bancos comerciais. Todos nós nos recordamos do que aconteceu a seguir à crise de 2008, e não só em Portugal. Com muita gente a ganhar dinheiro pelo meio, claro. Assim, o BCE acabou por se tornar o banco central com menos poder do mundo avançado, incapaz de gerir satisfatoriamente a própria moeda ou de supervisionar convenientemente os bancos comerciais a operar na zona euro..De fracos poderes, rodeado de ideias erradas, perante o agravar da mais recente crise financeira internacional, o BCE teve de pedir ajuda à Comissão Europeia (claro) e ao FMI - essa instituição com experiência de gerir crises em países de instituições fracas, da América Latina à Ásia (as intervenções do FMI na Grã-Bretanha, em Portugal e em Itália no seguimento das crises petrolíferas de 1973 e 1979 foram historicamente excepcionais). Em suma, o BCE, sem força própria, sem a ajuda dos governos, acabou parcialmente nas mãos de uma instituição financeira internacional sem experiência de gestão política no mundo mais avançado. Os resultados estiveram à vista. E só não foram piores porque Mario Draghi, o presidente do BCE desde 2011, deitou muitas ideias, muita teoria para o cesto dos papéis..Agora, por ironias várias, Christine Lagarde, a chefe do FMI desde 2011, passa para chefe do BCE. É altura de exigirmos aos governos da zona euro e à Comissão Europeia que devolvam ao BCE o lugar que deve ter na história dos bancos centrais e a autoridade de que necessita para acabar de construir o euro de que precisamos. Por outras palavras, é altura de exigir que a política monetária e económica da zona euro seja coordenada entre autoridades políticas eleitas e autoridades monetárias, entre políticos e técnicos. Não vai ser fácil, haverá muitos problemas pelo caminho, mas essa é que deve ser a direcção. Se tal acontecer sob a antiga chefe do FMI, será seguramente uma das grandes ironias da história recente da Europa..Investigador da Universidade de Lisboa. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Um banco central, como o Banco da Inglaterra ou o Banco Central Europeu (BCE), existe para gerir as moedas nacionais ou das uniões monetárias. Nessa gestão, tem de se preocupar com o controle da inflação e, seguindo teorias já com algumas décadas, mas em que muitos ortodoxos não querem acreditar porque não lhes convém, com a correcta gestão da moeda de que as economias necessitam para a actividade corrente. Perante essas duas funções, natural tem sido que haja um determinado grau de coordenação política entre bancos centrais e governos nacionais, pois são funções em que diferentes políticas se cruzam. Essa coordenação nem sempre existiu com a mesma força, por esse mundo fora, e houve ocasiões de conflito entre governos e bancos centrais, mas era uma das garantias da correcta gestão da política monetária, financeira e económica..Entretanto, algures na década de 1990, por razões que têm que ver com aquelas ideias a que muitos gostam de chamar "neoliberais" (mas que no fundo não são mais do que pretextos de concentração de poder económico e que de liberais pouco ou nada têm), começou a surgir uma onda a defender que os bancos centrais deveriam ser independentes dos governos. Por outras palavras, tratava-se de pôr na mão de instituições sem controlo democrático a gestão de uma parte importante das políticas nacionais. Não faz sentido nenhum, claro, mas o poder económico transformado em poder político consegue vender bem as ideias que quer, incluindo estas. E muita gente acreditou mesmo que bancos centrais afastados dos governos controlavam melhor a inflação (que foi grave nos anos 1970 e 1980, mas não depois) e - pelo que até agora se disse, já não devia haver lugar para espanto - o crescimento económico. Claro que estas ideias se venderam melhor junto de eleitorados menos informados, com instituições mais recentes e menos consolidadas, como o português, onde foram levadas o mais longe possível. Em países institucionalmente mais avançados, como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha ou a Suécia, elas não tiveram tanto sucesso e os governos mantiveram algum controlo sobre os respectivos bancos centrais, tal como devia ser. A Alemanha às vezes aparece como um caso à parte, antes do euro, mas não o foi. Não havendo aqui espaço para explicar tudo, basta recordar que o banco central alemão foi criado pelos EUA, logo a seguir à Segunda Guerra Mundial..Entretanto, no meio desta história, surgiu o Banco Central Europeu, o gestor da política monetária dessa união que tarda em ser o sucesso que deveria ser. O BCE, como sabemos, nasceu o mais independente possível de qualquer governo, até porque o governo "europeu" pouco o era, nos idos anos 1990 e 2000, e ainda pouco o é. Dizem-nos que o BCE nasceu à imagem do banco central alemão, mas isso é tanto verdade como dizer que a Comunidade Económica Europeia nasceu à imagem de Carlos Magno. Na verdade, o BCE nasceu à imagem das ideias "neoliberais", as tais que de liberal pouco têm..Pelo meio ainda, os bancos centrais foram ganhando ou consolidando competências, incluindo a de supervisionar os bancos comerciais e outras instituições financeiras. Estava para se ver o resultado: bancos centrais cada vez mais fora da alçada dos governos a vigiar bancos de que dependiam para a prossecução dos objectivos monetários. Assim, em muito sítio, deu-se a transferência da dependência perante os governos para a dependência perante os presidentes e os conselhos de administração dos bancos comerciais. Todos nós nos recordamos do que aconteceu a seguir à crise de 2008, e não só em Portugal. Com muita gente a ganhar dinheiro pelo meio, claro. Assim, o BCE acabou por se tornar o banco central com menos poder do mundo avançado, incapaz de gerir satisfatoriamente a própria moeda ou de supervisionar convenientemente os bancos comerciais a operar na zona euro..De fracos poderes, rodeado de ideias erradas, perante o agravar da mais recente crise financeira internacional, o BCE teve de pedir ajuda à Comissão Europeia (claro) e ao FMI - essa instituição com experiência de gerir crises em países de instituições fracas, da América Latina à Ásia (as intervenções do FMI na Grã-Bretanha, em Portugal e em Itália no seguimento das crises petrolíferas de 1973 e 1979 foram historicamente excepcionais). Em suma, o BCE, sem força própria, sem a ajuda dos governos, acabou parcialmente nas mãos de uma instituição financeira internacional sem experiência de gestão política no mundo mais avançado. Os resultados estiveram à vista. E só não foram piores porque Mario Draghi, o presidente do BCE desde 2011, deitou muitas ideias, muita teoria para o cesto dos papéis..Agora, por ironias várias, Christine Lagarde, a chefe do FMI desde 2011, passa para chefe do BCE. É altura de exigirmos aos governos da zona euro e à Comissão Europeia que devolvam ao BCE o lugar que deve ter na história dos bancos centrais e a autoridade de que necessita para acabar de construir o euro de que precisamos. Por outras palavras, é altura de exigir que a política monetária e económica da zona euro seja coordenada entre autoridades políticas eleitas e autoridades monetárias, entre políticos e técnicos. Não vai ser fácil, haverá muitos problemas pelo caminho, mas essa é que deve ser a direcção. Se tal acontecer sob a antiga chefe do FMI, será seguramente uma das grandes ironias da história recente da Europa..Investigador da Universidade de Lisboa. Escreve de acordo com a antiga ortografia.