A última manobra do trumpismo joga-se no Congresso e nas ruas de Washington

Senado e Câmara dos Representantes dos EUA reúnem-se hoje para uma sessão que irá estender-se para o dia seguinte devido à oposição de alguns republicanos em reconhecer a vitória de Joe Biden. Donald Trump deverá dirigir-se aos seus apoiantes.
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Devia ser uma cerimónia, uma formalidade, nada mais do que isso. Mas Donald Trump e os seus aliados não desistem e prometem esgotar todas as oportunidades, mais ou menos legais, mais ou menos constitucionais, para que o voto popular e o voto do Colégio Eleitoral, que atribuiu a vitória das presidenciais à dupla democrata Joe Biden e Kamala Harris, caiam em saco roto.

A certificação dos votos, nada mais do que a contagem em voz alta por eleitos do Congresso dos resultados oficiais de cada estado, vai ser palco de uma manobra - a última tentativa em campo legal - de criação de uma comissão eleitoral de urgência, a qual daria a possibilidade de alterar os resultados nos estados objeto de contestação. Lá fora, nas ruas, o presidente derrotado mas não convencido, vai dirigir-se aos participantes de um "grande protesto" que Trump anunciou como "louco" e na qual irão estar presentes, entre outros grupos de adeptos do trumpismo, os membros do grupo de extrema-direita supremacista Proud Boys.

"Dorme muito", aconselhou o representante Mo Brooks, do Alabama, à sua colega republicana Debbie Lesko, do Arizona. "Porque vai ser um dia looongo." Foi Brooks quem avançou com a iniciativa de questionar a certificação dos resultados, uma prerrogativa prevista na lei, assim haja um membro da Câmara dos Representantes e outro do Senado que se unam nesse sentido: o recém-eleito senador Josh Hawley, do Missouri, juntou-se a Brooks.

A mesma legislação, criada em 1887 depois de uma vitória altamente contestada por um voto do Colégio Eleitoral, permitiu ao longo dos tempos objeções por parte dos congressistas, mas nunca se verificou uma alteração do resultado de qualquer estado, segundo a Bloomberg. Já neste século, em 2005, a derrota do democrata John Kerry face a George W. Bush foi posta em causa no estado do Ohio, mas o desafio não colheu em nenhuma das câmaras.

O Senado e a Câmara reúnem-se a partir das 13.00 de Washington (18.00 de Lisboa) para abrir e contar as certidões de votos eleitorais dos 50 estados e do Distrito de Columbia. O vice-presidente Mike Pence, cujas funções incluem presidir ao Senado, dirige a sessão e abre os sobrescritos por ordem alfabética; passa cada documento aos congressistas que vão ler os resultados, previamente selecionados nas respetivas câmaras. Em cada resultado, o vice-presidente pergunta se alguém no Congresso tem alguma objeção, sendo que qualquer membro pode opor-se aos resultados de qualquer estado.

Nem a lei nem a tradição estipula o que é uma objeção válida, mas a lei deixa claro que as objeções devem ser apresentadas por escrito e assinadas por pelo menos um membro de cada uma das câmaras, ao que os congressistas retiram-se para as suas respetivas câmaras para debater e votar cada uma das objeções. Como também prevê duas horas de debate e os representantes republicanos anunciaram que vão pôr em causa a certificação oficial dos seis estados que passaram de vermelho para azul (Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Pensilvânia e Wisconsin), a certificação vai demorar mais de 12 horas.

Todo este processo está condenado à partida, apesar do apoio declarado de 13 senadores e cerca de 100 representantes. São necessárias maiorias simples de ambas as câmaras do Congresso para rejeitar os votos eleitorais de um estado, mas a Câmara dos Representantes é controlada pelos democratas. O candidato que atingir 270 votos eleitorais é o vencedor. Joe Biden obteve 306 votos, como foi confirmado nas reuniões dos grandes eleitores, que decorreram no dia 14 de dezembro.

Há ainda que contar com outra iniciativa liderada pelo senador Ted Cruz e que conta com o apoio de uma dezena de senadores: durante a objeção à certificação do estado do Arizona (o primeiro na ordem alfabética dos estados em disputa), o texano vai propor a criação de uma comissão eleitoral para "ouvir as alegações de fraude eleitoral, analisar as provas e determinar quais são os factos e em que medida a lei foi cumprida", o que poderia incluir a anulação dos resultados. Também aqui não se vê como os republicanos podem forçar a criação de tal comissão.

Ao pressionar de forma repetida os congressistas republicanos - tal como fez com o governador e o secretário de Estado da Geórgia -, Trump abre ainda mais brechas num Partido Republicano há muito sequestrado pelo empresário nova-iorquino. O antigo chefe de gabinete de Ted Cruz e atual eleito pelo Texas na Câmara dos Representantes Chip Roy explica numa declaração que a rebelião republicana é um tiro no pé porque os candidatos republicanos só venceram o voto popular por uma vez nos últimos 32 anos. Pôr em causa a eleição indireta pelo Colégio Eleitoral irá "deslegitimar o sistema que levou Donald Trump à vitória em 2016 e que poderá fornecer o único caminho para a vitória em 2024".

Os esforços de Trump e dos seus fiéis em virar o jogo eleitoral contam-se em cerca de 60 recursos e processos interpostos em tribunais estaduais e federais, até ao Supremo. Mais de 90 juízes não viram qualquer mérito nas ações movidas. Numa das mais recentes, um juiz federal rejeitou uma ação interposta pelo representante do Texas Louie Gohmert que defendia que Pence "pode contar os votos dos eleitores certificados pelo executivo de um estado, ou pode preferir uma lista alternativa de eleitores devidamente qualificados" e "pode ignorar todos os eleitores de um determinado estado".

Sem guarida legal, resta a hipótese, aventada por Trump no comício de segunda-feira na Geórgia, de o seu vice-presidente se autoatribuir poderes e atribuir a vitória ao presidente cessante. "Espero que o nosso grande vice-presidente avance por nós. Ele é um grande homem. Claro que, se não conseguir, não vou gostar tanto dele", disse.

Donald Trump parece viver numa realidade alternativa, alimentada pelos mais próximos coselheiros e assessores, segundo um conselheiro admitiu ao The Washington Post. "Ele pensa, sem dúvida, que ganhou e que ganhou em grande", até porque é isso que lhe disseram que ia suceder, explica. "Não se trata da sua incapacidade em seguir em frente. Trata-se da sua incapacidade de sequer diagnosticar o que aconteceu. Ainda não vai realizar a autópsia, por assim dizer", antes de concluir que o presidente "parece um disco riscado".

Na procura incessante de uma solução para se manter no poder, Trump tem ouvido vozes mais extremistas, como a nova representante da Geórgia Marjorie Taylor Greene, a advogada adepta de teorias da conspiração Sidney Powell e o ex-conselheiro de segurança nacional Michael Flynn. Estes dois últimos discutiram o cenário de se declarar lei marcial e de realizar novas eleições nos estados contestados, sob a tutela militar. Uma ideia de tal modo perigosa que conseguiu o feito de juntar todos os ex-secretários da Defesa, de Dick Cheney a Leon Pannetta, de Donald Rumsfeld a Jim Mattis e Mark Esper, que trabalharam sob as ordens de Trump: defenderam em texto de opinião a transferência de poder pacífica e mostraram-se contra o envolvimento militar em litígios eleitorais.

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