Brasil. Como matar a fome num país rico por natureza?

Inflação, desemprego e sustentabilidade são testes à economia. Mas todos os problemas ficam para trás, quando há 33 milhões de famintos no maior produtor de alimentos do mundo. O DN está a publicar desde 1 de setembro um conjunto de reportagens sobre os 200 anos da independência do Brasil, que se celebram no próximo dia 7.

O Brasil continua no topo dos países com inflação mais alta entre as maiores economias mundiais. Apesar da queda da taxa de desemprego para um dígito, 9,3%, mais de 40% dos trabalhadores no país estão na informalidade (sem vínculo formal à entidade patronal). Desde 2019, as taxas de devastação da Amazônia superam os 10 mil km2, um recorde negativo.

Mas todos esses números, por mais preocupantes que sejam, perdem importância perante os 33 milhões de famintos, mais 20 milhões do que em 2020, e os mais de 100 milhões em insegurança alimentar. Como é possível no maior produtor de alimentos do mundo?

"Como o maior exportador de soja do mundo, o maior rebanho de gado bovino do mundo, já superando Austrália e Estados Unidos, o país que produz 12 milhões de toneladas de trigo por ano e é um dos maiores exportadores de milho tem cerca de 30 milhões de pessoas com fome e 108 milhões, metade da população, a viver abaixo dos 413 reais por mês [80 euros] é, realmente, difícil de explicar", reconhece ao DN Leonardo Trevisan, professor de economia da Escola Superior de Propaganda e Marketing.

"Uma das explicações é que há um problema grave de acesso ao emprego - segundo dados, recentes, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o desemprego caiu para um dígito, 9,3%, mas essa queda não atingiu os mais pobres e os 5% mais pobres foram os mais afetados com a pandemia", continua.

Esse recuo para 9,3% em junho, no entanto, não leva em conta o número recorde de informais, aponta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Além dos 10,1 milhão de brasileiros ainda em busca de trabalho, o número de trabalhadores informais foi o maior de sempre, estimado em 39,3 milhões, 1,1 milhão de pessoas a mais que no trimestre anterior, levando a taxa de informalidade a 40%.

"Por outro lado, o Brasil tem um problema grave de distribuição de rendimentos e de desigualdade: 1% da população detém 40% do rendimento nacional, se aumentarmos a medida para 10% da população, essa faixa detém mais de 65% do rendimento nacional, esse é um dos maiores problemas, conectado à ausência de emprego, ambos inibidores do progresso e da resolução da pobreza", assinala o professor de economia.
O Brasil permanece um dos países com maior desigualdade social do mundo, segundo o estudo lançado pelo World Inequality Lab, que integra a Escola de Economia de Paris e é codirigido pelo economista francês Thomas Piketty, de finais de 2021.

"Entre os mais de 100 países analisados no relatório, o Brasil é um dos mais desiguais. Após a África do Sul, é o segundo com maiores desigualdades entre os membros do G20", reforçou Lucas Chancel, autor do relatório e codiretor do Laboratório das Desigualdades Mundiais.

O equilíbrio entre os interesses da agropecuária no país, setor tradicionalmente mais próximo de Jair Bolsonaro, candidato à reeleição no sufrágio de 2 de outubro, e a sustentabilidade, assunto mais caro a Lula da Silva, o mais forte adversário do atual presidente, de acordo com as sondagens, é um fator economicamente importante.
Segundo Trevisan, "há dois agronegócios no Brasil, aquele pouco sensível, digamos, à sustentabilidade e outro, admitamo-lo, já muito sensível a ela". "Qual deles o maior? Se, como nos últimos anos, houver um défice de fiscalização e de regulação, o primeiro tenderá a ser maior, logo, é necessário o estado fiscalizar e regular", defende.

"E os países europeus e, também, alguns asiáticos estão corretíssimos ao condicionar negócios com o agronegócio brasileiro com práticas sustentáveis, é outra forma de regulação", conclui o académico.

"O Brasil tem um problema grave de distribuição de rendimentos e de desigualdade: 1% da população detém 40% do rendimento nacional".

Lula, em recente entrevista à imprensa internacional, citou o problema. "[Em caso de vitória da sua candidatura] Vocês vão ver o Brasil a cuidar do clima como nunca cuidou", prometeu. "O Brasil precisa ser levado em conta na discussão do problema do clima no planeta pela sua dimensão e potencial extraordinários. Precisamos tomar uma atitude, se não o desmatamento continua".

"Da mesma forma que não podemos permitir que no planeta 900 milhões passem fome, não podemos permitir que alguns irresponsáveis desmatem, não é apenas lei, será profissão de fé do meu governo acabar com o garimpo ilegal", prometeu. "A manutenção de uma árvore em pé talvez valha mais do que qualquer outro bem, o Brasil é soberano em relação à Amazónia, isso que fique claro, mas não pode ser ignorante em relação à ciência, temos de cuidar da fiscalização e ainda vamos criar o ministério dos povos originários", concluiu.

Para Bolsonaro as questões ambientais "servem para atrapalhar". "O que tem de gente para atrapalhar, é incrível, em relação às questões ambientais. Alguns preferem morrer de fome a derrubar uma árvore. É uma opção deles mas não pode ser para o resto do nosso país", apontou, durante a cerimónia de abertura do Global Agribusiness Forum 2022, em São Paulo.

Sobre o flagelo da fome, Bolsonaro acredita que é o Brasil que determina se o mundo passa ou não necessidade alimentar. "Exatamente por sermos importantes, por sermos aqueles que poderão dizer se o mundo vai passar fome ou não, tem gente de fora interessada no nosso país. Quem não pensa dessa maneira, no meu entender, está devendo muito. Temos de nos preocupar com a nossa pátria, com os nossos bens, com aquilo que ninguém mais tem lá fora".

Para Lula, o combate à fome no país, tem de ser obra coletiva, como nos seus mandatos no Palácio do Planalto, de 2003 a 2010. "As palavras-chave são "inclusão social" porque temos 33 milhões de pessoas a passar fome. Sei o tamanho do desafio e faço ginásio toda a manhã para me preparar para ele".

Além da fome, ou em paralelo a ela, porque segundo os especialistas os problemas convergem, a inflação é um trauma antigo. O Brasil permanece no topo do ranking dos países com maiores taxas entre as principais economias mundiais, mesmo após ter registado deflação histórica em julho. Apesar dessa queda, o Brasil ainda tem uma inflação acumulada em 12 meses de 10,07% e é a quarta maior taxa do G20, segundo levantamento da Quantzed.

"No Brasil, há aquela inflação comum a quase todos os países que deriva do choque de preços, por exemplo, do petróleo, a que EUA, China e Europa também são sensíveis", refere Trevisan. "E há aquela que deriva do défice fiscal descontrolado, que obriga a emitir mais e quando se emite mais a inflação cresce, isso depende dos governos, e sem conseguir prevê-la a longo prazo, prevejo-a muito alta em 2023. Nos próximos 200 anos? Não faço ideia...".

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A fome voltou a ser o principal problema do Brasil?

Sim, é um problema no Brasil do século XVII ao XX mas não devia ser no século XXI até porque tinha sido superado. Mas, lembrando o cientista Josué de Castro, a "fome é uma manifestação", uma manifestação de um modelo de desenvolvimento excludente e de um sistema de produção predatório. O Brasil de Bolsonaro não gera só fome, ele bateu quatro grandes recordes: recorde de fome, recorde de produção de grãos, recorde de desmatamento e recorde de obesidade. Eis o paradoxo: um dos maiores produtores de alimento do mundo, convive com 33 milhões de pessoas com fome e com 65 milhões, uma Inglaterra, que não consegue comer três refeições por dia.

Como se combate a fome, há uma receita global ou muda de país para país?

Fora a fome por motivos de desastres naturais ou de guerra, há problemas que podem ser enfrentados de forma comum: primeiro, é necessário decisão política e o Brasil é exemplo, quando Lula, em 2003, mobilizou o país ao anunciar o combate à fome como prioridade; segundo, ter consciência de que o problema não é de produção, é de falta de rendimento das famílias para comprar os alimentos; terceiro, políticas públicas para proteção social, como alimentação escolar e fortalecimento da agricultura camponesa.

A chamada economia verde tem de ser prioritária no Brasil?

O Brasil tem toda a condição de liderar não só a redução de emissões de CO2 e de queimadas mas também a transição ecológica: para tal, é necessário, primeiro, produzir sem desmatar, o que já é possível com os conhecimentos científicos que temos, depois, transitar para a agroecologia, sem pesticidas que prejudiquem as saúdes planetária e humana, e, finalmente, a transição energética, sendo o país líder em energias renováveis.

Lula resume a sua política económica a "colocar o pobre no orçamento". Concorda?

Mas ele completa: "é preciso colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda". Ou seja, fazer com que as políticas públicas cheguem a quem precisa e que a carga tributária deixe de ser centrada no consumo, o que prejudica os mais pobres, e chegue às fortunas que não pagam imposto sobre lucro. Outra frase que eu gosto do Lula é "o pobre não é problema, é solução" porque o Brasil tem um mercado doméstico de 215 milhões e boa parcela da população não consegue participar desse mercado - se comprasse roupa, fogão, frigorífico, dinamizaria a indústria.

Têm razão os liberais brasileiros quando dizem que o Brasil já tem demasiado Estado?

Já ninguém defende no mundo o modelo do Estado mínimo a não ser os economistas do Brasil que o apresentam diariamente, em verso e prosa, na imprensa, mesmo depois de toda a aprendizagem da pandemia, em que os países que voltaram mais rapidamente à normalidade foram aqueles cujo Estado estava mais preparado.

Como sonha o Brasil de daqui a 200 anos?

Primeiro, voltando a Josué de Castro, o meu sonho seria uma geografia livre da fome. E que o Brasil se tornasse não o maior produtor de alimentos no mundo, mas o maior produtor de alimentos saudáveis no mundo. E sonho com um país cujos representantes fossem a cara do nosso povo, com mulheres, negros e jovens e não só homens, brancos e velhos.

dnot@dn.pt

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