Um dia de silêncio para falar de campanha

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Hoje é um dia de inferno para os meios de comunicação social. Ninguém pode falar da coisa mais importante sobre a qual tem de se falar - e isso é o contrassenso do jornalismo. É como o elefante no meio da sala. Hoje é dia de reflexão para as eleições de amanhã. Ora, as eleições de amanhã são o assunto a tratar, hoje. Mas não. Não se pode apelar ao voto, fazer campanha é punido com multas, e isso inclui qualquer artigo ou peça jornalística que se considere enquadrar nessa categoria pelas autoridades competentes, seja a Entidade Reguladora para a Comunicação Social ou a Comissão Nacional de Eleições. Há países onde acontece o mesmo - Itália, Espanha, França -, há países onde a campanha vai até à boca das urnas, como nos Estados Unidos. E as opiniões dividem-se sobre a utilidade e as consequências de ambos os modelos.

Na verdade, nos tempos que correm o silêncio é de ouro, e um dia dele não nos faria certamente mal. Aliás, em Itália, o dia de hoje é chamado de silêncio eleitoral. O problema é que o silêncio sobre a campanha pode não sê-lo sobre os temas que verdadeiramente influenciam a votação. Ou alguém acredita que alguém vai parar de difundir uma notícia falsa no Facebook por causa da lei que supostamente lhe impõe uma multa entre 2 e 24 euros? E que, aliás, tecnicamente pode nem ser punível? (Também por isto publicamos neste sábado um guia contra a difusão de falsidades online.)

Dúvida: seremos votantes mais responsáveis por termos ficado um dia sem ouvir promessas eleitorais? É duvidoso que assim seja. E também não se compreende que seja o próprio sistema a criar uma certa desconfiança sobre a própria campanha, como se contivesse algo de negativo (que não tem). Aliás, segundo os resultados das sondagens, e comparando com as que foram feitas antes de a campanha começar, verificamos que a esta pode ter tido capacidade de mudar alguma coisa. Pode ter tido capacidade de esclarecer as pessoas sobre os projetos dos partidos - e ter mudado algumas intenções de voto. Ou seja, provavelmente, os dias de reflexão foram todos os outros, aqueles em que a população votante foi sendo confrontada em direto com promessas, programas e atitudes e refletiu em direto sobre eles.

Façamos, então, um elogio da campanha, no dia em que dela não se pode falar. Por muito que a comunicação social esteja presente, a campanha é o momento em que os políticos controlam o discurso - pelo menos, o que conseguem controlar, o que não inclui acontecimentos fortuitos. E em que contactam diretamente com as pessoas, sendo certo que a comunicação social, mesmo no seu papel de mediadora, menos intervém na escolha da mensagem e no critério. Esses são decididos pelos emissores - para o bem e para o mal. Mesmo tendo neste ano a cobertura sido feita de forma muito profissional - economia da atenção, oblige - com reportagens profundas, fact cheking, temas esmiuçados, debates e análises. Isso terá favorecido alguns candidatos, de outra forma às avessas com os jornalistas, e prejudicado outros, ou mesmo trazido para a liga dos elegíveis candidatos de que não ouvimos falar no defeso.

Há quem diga que a campanha não atrai os que devia atrair, os jovens, os indecisos. Só para citar dois grupos para quem o ato de ir votar não parece revestir-se de grande urgência. Talvez seja preciso mudar os discursos, a forma e, até mais importante, os temas. Se isso significar que se abre a política aos que dela não fazem parte, será sempre uma mudança positiva. Mas não nos podemos esquecer de que o momento em que isso mais acontece, da política como hoje a conhecemos, é, já, a campanha eleitoral. Denegrir esse momento é prestar um mau serviço à democracia. Amanhã saberemos se estamos no bom ou no mau caminho: e para nos ajudar nessa outra reflexão teremos os dados da abstenção.

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