Batalhas do impeachment
Depois de, em 2016, ter convidado a Rússia a piratear ainda mais e-mails à campanha democrata em pleno debate com Hillary Clinton, e de em julho último ter pedido diretamente ao presidente ucraniano para investigar Joe Biden e o seu filho Hunter, Trump passou para um terceiro nível na passada quinta-feira, ao pedir publicamente ao governo chinês que tomasse as mesmas medidas. Três momentos em que o presidente dos EUA pediu aos olhos de todos para que houvesse uma ingerência externa na política americana para atingir diretamente um adversário político.
Acreditem que consigo perceber o argumento daqueles que defendem o impeachment já iniciado como um boomerang que pode prejudicar os democratas e reeleger Trump. Ou seja, que o melhor era não fazer nada. O que não é possível aceitar é que, com o manancial de factos que se vão acumulando, não se procure averiguar se o presidente dos EUA violou a Constituição e incorre num rol de acusações passíveis de destituição, apenas porque taticamente esse percurso pode não resultar no resultado político que desejamos. O impeachment, como tenho procurado argumentar, é muito mais um processo do que um resultado e o legislador, se pugna pela defesa intransigente da Constituição, não deve ter outro foco que não o apuramento da verdade, mesmo que politicamente possa não lhe ser benéfico.
Vale a pena fixarmo-nos um pouco aqui. Pelos factos que estão a ser diariamente levantados e que Trump acredita jamais serem motivo de preocupação - o seu juízo é que o impeachment o beneficia, além de lhe parecer benéfico alimentar a fogueira do ódio dos seus apoiantes contra a aristocracia democrata de que Biden faz parte - estamos perante um abuso de poder internacional para proveito interno próprio. Ora, quem faz isto está confortável com ingerências externas em período eleitoral, desde que tire disso partido. As audições à porta fechada e que vão já em velocidade acelerada na Câmara dos Representantes ditarão o dolo presidencial e o encaixe constitucional dos factos levantados.
Este ponto é relevante na gestão jurídica e política que os democratas têm necessariamente de fazer: o número de artigos acusatórios ditará a ambição do impeachment e a pressão sobre Trump, obrigado a defender-se de cada um. Em sentido inverso, se de um leque de artigos resultar a absolvição de Trump ou a fragilidade da argumentação democrata na maioria das acusações, então a opinião pública e o próprio presidente irão certamente tirar ilações sobre a leviandade da acusação e a banalização da tentativa de destituição presidencial. Outro argumento também relacionado com a gestão de expectativas por parte dos democratas está diretamente relacionado com o uso que farão do relatório Mueller, uma investigação profunda às tropelias de Trump, que este tratou logo de desvalorizar na medida em que levantava mais dúvidas do que acusações perentórias. Aliás, em boa verdade, o relatório acabou por ser encarado pela opinião pública como um anticlímax, beneficiando Trump. Se os democratas concentrarem excessivos esforços na ressurreição do relatório em vez de apresentarem factos novos com impacto forte na investigação e na opinião pública, acompanhando a expectativa geral, poderão perder o controlo do processo mediático e, por via disso, da agenda política.
Entretanto, dos últimos dias, ficámos a saber que o secretário de Estado Mike Pompeo assumiu ter estado presente no telefonema entre Trump e Zelensky, quando tinha omitido tal facto ao FBI. Ou que o vice-presidente Mike Pence esteve sempre a par de toda a pressão feita por Trump ao novo presidente ucraniano, mas nunca reportou a dinâmica ao Congresso. Ou seja, estamos ainda no início de uma longa jornada, mas o círculo mais servil de Trump parece sólido na sua lealdade. Nunca é demais recordar que o impeachment pode ser acionado sobre outros membros da administração, não é um exclusivo do presidente. Em último caso, e na medida da gravidade dos factos e da amplitude das acusações, podemos vir a ter uma tal erosão da Casa Branca que os próprios republicanos tenham de escolher de forma rápida um ticket novo às presidências de 2020. Se os democratas quiserem fazer isto bem, não devem excluir uma atenção reforçada ao papel de Mike Pence num eventual conluio com Donald Trump.
Também nesta semana, o enviado especial dos EUA para a Ucrânia, o embaixador Kurt Volker, disponibilizou à investigação da Câmara dos Representantes mais de 60 páginas de transcrições de mensagens escritas e trocadas com um conselheiro do presidente da Ucrânia, o advogado de Trump, Rudy Giuliani, o embaixador americano na UE e outros diplomatas, onde dava conta do desconforto manifestado por setores da diplomacia americana em relação a qualquer condicionamento na ajuda militar a Kiev em função de uma aceleração às investigações a Biden ou, pior ainda, sobre a hipótese de o presidente americano vir a tirar partido político através de uma pressão a um governo estrangeiro.
Kurt Volker, que estava no cargo sem ser remunerado, é um dos mais reputados diplomatas americanos, antigo embaixador na NATO durante a transição entre Bush e Obama, e muito considerado entre democratas e republicanos. Nunca alinhou com qualquer condescendência em relação a Putin que pudesse emergir com esta administração - tal como Fiona Hill do Conselho de Segurança Nacional, que entretanto pediu a demissão uma semana antes do telefonema entre Trump e Zelensky -, funcionando os dois como equilibradores permanentes na formulação da política da administração para a Rússia, se é que ela existe. A possível saída de cena de ambos é um dos danos colaterais do ucraniagate, deixando mais livre o caminho ao círculo de interesses trumpista na relação pouco clara com o Kremlin.
Sendo muito mais um processo pela verdade do que um resultado meramente político, o impeachment já vai tendo efeitos colaterais reais. E ainda agora começou.
Investigador universitário