Quem chega ao cruzamento da Pioneer Boulevard com a Ashworth Street, na cidade californiana de Artesia, vê uma tabuleta a apontar a direção do salão português D.E.S. Portuguese Hall. É um espaço generoso, com uma imponente fachada. Paul Barcelos pega num molho de chaves e abre os portões que dão acesso ao salão, encerrado há mais de três meses por causa da pandemia de covid-19.."Temos feito jantares drive-thru, com bastante sucesso", diz o lusodescendente ao DN, falando do cancelamento das festas portuguesas neste ano. "Enquanto não abrirmos vamos fazer um por mês.".Este tem sido o ponto focal da comunidade luso-americana de Artesia, a cerca de 40 quilómetros de Los Angeles, onde 9,4% dos habitantes são de origem portuguesa. No centro do largo há um enorme coreto, ladeado por duas salas de festa, um café-bar, uma pequena capela e uma praça de touros..Os sócios mais ativos do salão são os das gerações mais velhas, os que chegaram na grande onda de emigração açoriana para a Califórnia dos anos 60 e 70 do século passado, após a erupção do vulcão dos Capelinhos. Os pais de Paul Barcelos, presidente da direção do salão neste ano, emigraram nessa vaga com a maioria da família. Ele já nasceu nos Estados Unidos, mas fala um português impecável.."Falávamos português em casa e eu tive sempre interesse em manter a língua", explica. "Quando começámos a apanhar aqui a RTP, eu gostava de assistir aos jogos [de futebol] e ver televisão permitiu-me aprender mais." Esta é a terceira vez que faz parte da direção do salão, uma instituição que foi fundada em Artesia em 1927 para dar apoio à comunidade portuguesa da zona, que acabara de erigir a igreja católica da Sagrada Família..Barcelos cresceu rodeado de tradições. "Era aqui que nos reuníamos e conhecíamos a nossa cultura, estávamos ligados às nossas raízes. Para os meus pais este era um lugar familiar, estavam juntos com pessoas que conheciam. Nós apreciávamos isso." Nas festas havia sopas, bolo lêvedo, massa sovada e outras iguarias do arquipélago. Os cantares, as danças e as celebrações religiosas mantiveram-se ao longo de todas estas décadas..Foi mesmo nos anos 1970 e 1980 que o salão conheceu maior dinamismo, fruto dessa emigração renovada que quis trazer ainda mais tradições. "Nesse tempo decidiram fazer uma maneira diferente de organizar isto", lembra Paul Barcelos. "Além das rainhas das festas, começaram os bailes de Carnaval da ilha Terceira, tiveram touradas de praça. Antes desse tempo, as equipas de futebol e a filarmónica eram separadas do DES e eles trouxeram-nas para cá", descreve. "Isso é que unia a comunidade.".A equipa de futebol, Artesia D.E.S Soccer Club, era extremamente popular e quem queria jogar e aspirar a voos mais altos ia para ali. "Jogavam todos os domingos e juntava-se muito pessoal a ver o jogo", recorda Barcelos. "Agora os rapazes jogam à bola para os clubes americanos, porque dá mais saída.".Embora o futebol não seja o desporto-rei nos Estados Unidos, a ligação continua forte na comunidade portuguesa. O salão celebra sempre a Festa da Bola no final de maio e esse é o evento mais concorrido do ano, embora a Festa do Espírito Santo seja a de maior importância simbólica na comunidade. É isso que significa o acrónimo do salão: D.E.S., Divino Espírito Santo.."Diria que 95% dos salões têm que ver com o Espírito Santo e com a sua presença na idiossincrasia açoriana, que é uma coisa muito diferente do que no resto do país", explica ao DN Diniz Borges, professor universitário, presidente da Coligação Luso-Americana da Califórnia (CPAC) e cônsul-honorário de Portugal em Tulare, mais a norte. A comunidade luso-americana que reside na Califórnia contabiliza cerca de 347 mil pessoas e a maioria tem origem açoriana. "Os salões têm que ver com Espírito Santo, Pentecostes ou algo assim. Estão ligados às ilhas e ainda são mantidos por causa dessas grandes festas.".Diniz Borges nasceu na Praia da Vitória e emigrou com os pais no final da década de 1960, quando tinha 10 anos. Tem sido um pilar da comunidade luso-americana e um grande promotor da língua, das tradições e das ligações entre a Califórnia e os Açores. Acredita que é preciso cuidar para que isso não se perca à medida que o tempo avança e as memórias se desvanecem.."Há sempre o relacionamento da saudade e emotivo mesmo das gerações que não nasceram nos Açores, mas que através dos pais o conhecem", afirma. "Há um trabalho a fazer para que essas gerações conheçam os Açores de hoje, porque muitos têm a imagem que os pais ou os avós lhes transmitiram, que é totalmente diferente dos Açores de hoje ou qualquer outro ponto de Portugal." Diz que esse trabalho tem de ser feito até pelo movimento associativo, tendo em conta também que muitos dos mais jovens não sabem falar português..Isso não os impede, no entanto, de quererem participar nas tradições. Foi uma das coisas que mais impressionaram a cantora Maria Bettencourt, que vive nos Açores mas tem família nos Estados Unidos. "Quando fui a Artesia pela primeira vez percebi a ligação forte que continuavam a ter com os Açores", diz ao DN a artista, sobrinha do músico luso-americano Nuno Bettencourt (da banda Extreme), que vive em Los Angeles. "Comecei a perceber que realmente era uma coisa muito forte e especial, uma noção que eu não tinha antes.".A presença de crianças e jovens lusodescendentes em bandas filarmónicas, grupos folclóricos e marchas é uma constante nas festas que se celebram na Califórnia. "Temos a ideia de que os mais jovens já não querem saber, já não têm vontade de fazer o que os antigos faziam", diz Maria Bettencourt, "mas surpreendeu-me haver malta da minha idade a fazer coisas que eu própria não tenho vontade de fazer.".Eles, mesmo os que nunca puseram os pés no arquipélago,"dão mais valor". É "aquele bocadinho de casa fora de casa.".Entre a tradição e o futuro.Paul Barcelos sabe que as coisas são mais diferentes para os seus filhos do que foram para ele. Já não há aulas de Português nas escolas de Artesia, ao contrário do que acontecia quando ele cresceu. "Eu quando era novo vinha e percebia o que eles estavam a dizer, mas os meus filhos não percebem nada. Gostam é de ver o visual da festa", explica. Ainda assim, sentem a mística. "Os meus filhos são já terceira geração e estão muito ligados à cultura, apesar de não saberem falar português. Gostam da comida portuguesa, preferem a seleção de Portugal, foram aos Açores pela primeira vez há três anos e estão encantados. Um deles nem queria regressar.".O futuro passa por estreitar ainda mais as relações entre a Costa Oeste e o arquipélago, e um voo direto seria um grande avanço, considera o luso-americano Nelson Ponta-Garça, que há dois anos trocou a Califórnia pelos Açores. "Uma das grandes dificuldades da comunidade foi sempre o transporte aéreo e o facto de estarem muito longe de Portugal", diz ao DN. A pandemia tornou tudo pior. "Nota-se muito o impacto da não vinda dos portugueses e dos lusodescendentes, quer a nível económico quer das relações entre as famílias", afirmou. "É um dos grandes dilemas na relação entre a Califórnia e Portugal. Fica muito condicionada por causa da distância.".Há, por isso, a noção de que será preciso reinventar os salões para garantir a sua prosperidade. "Nos anos 1970 e 1980 havia mais pessoas a frequentar o salão", diz Paul Barcelos "Havia talvez menos pessoas na comunidade, mas mais envolvidas." O decréscimo sentiu-se a partir dos anos 2000, com maior incidência na última década. "Temos de evoluir. Os nossos filhos estão interessados, mas muitas coisas que fazemos agora estão agarradas ao passado e penso que temos de seguir em frente nalgumas coisas. Temos de o fazer de uma forma que respeita o passado." Barcelos admite que a cultura portuguesa na Califórnia é conservadora e pouco disposta a fazer as coisas diferentes, porque sente que não são autênticas..O problema, analisa Diniz Borges, é que muitos salões estão fechados e sem rentabilização a maior parte do tempo, e isso será pouco sustentável - uma situação agudizada pela pandemia de covid-19. "Algumas comunidades rurais ainda conseguem ter uma grande presença de jovens nos seus corpos diretivos, mas o grande dilema é como é que se mantêm os salões nas próximas gerações", afirma. "Os salões vão ter que reinventar-se bastante, até porque já não são aquilo que eram para a comunidade emigrante de primeira geração até há uma dúzia de anos.".Há ideias em discussão, como alugar parte dos espaços para atividades diferentes, como creches, restauração e comércio. Em San Diego, por exemplo, o salão tem agora um minimercado que vende produtos portugueses. "Mesmo nos meios rurais não é possível ter o salão fechado para abrir uma vez a cada duas semanas para uma festa portuguesa", considera. "Tem de ser rentável e ter alguma utilidade. Montar aulas de Português à noite, para as crianças, é uma forma de trazer os pais e os jovens para o salão", exemplifica Diniz Borges..O professor explica também que há mais a ser feito para estreitar as ligações entre a Califórnia e os Açores, para lá do movimento associativo e familiar. A CPAC está a criar o grupo de lóbi Friends of the Azores para influenciar a legislatura em Sacramento. "Penso que teremos de começar a construir outras ligações, na tecnologia e noutras indústrias, como a do turismo", clarifica. "Temos de ir um bocadinho além da relação sentimental, para que os Açores tenham a projeção que precisamos de ter na Califórnia e com as novas gerações cada vez mais integradas."