Podemos entrevistar quem quisermos?

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Numa das suas edições de novembro do ano passado o programa da manhã do canal americano Fox, Fox & Friends (Fox e Amigos), teve como convidado um especialista em ambiente que disse, com ar sério, num cenário sério e azul, o seguinte: "Os combustíveis fósseis, de facto, melhoram o ambiente." E continuou por ali fora a negar o aquecimento global e com a concordância do apresentador do programa, Brian Kilmeade. A ida deste especialista ao programa da Fox era uma resposta a um tweet do democrata - e possível candidato - Bernie Sanders sobre os efeitos terríveis da mudança de clima. "Isto é tonto", contrapôs Morano. O apresentador concordou.

Este é o ponto a que chegaram os programas da manhã nos Estados Unidos - imiscuíram-se na luta política, tomaram posição, e hoje são pró e contra Trump. Mas numa coisa o programa da manhã da Fox é igual aos programas da manhã no mundo inteiro: uma mescla perigosa entre jornalismo e entretenimento. Os que o apresentam não são jornalistas, mas parecem. As opiniões são dadas sem pejo, mas inspiram-se em factos e reportagens reais. As informações sobre o tempo que faz e as receitas de culinária são intercaladas por notícias sobre os "perigos da imigração".

Donald Trump sabe bem do poder da televisão no seu duplo papel de fã e personagem. E, ao usá-la, não o fez através do jornalismo televisivo (que tem um ética profissional) - mas através destes programas de televisão que, além de lhe serem favoráveis, por não serem considerados informação eram permeáveis a entorses opinativas. Isso começou na campanha - com Trump a tuitar em direto sobre temas que o programa Fox & Friends acompanhava - e continuou presidência fora.

A coisa é de tal forma gritante que o Fox & Friends é hoje um dos braços armados de Trump junto da classe média suburbana. Mas sendo estes programas que acabam por ser vistos por toda a gente, nem que seja na TV da cozinha, antes de ir trabalhar, percebe-se bem o poder que têm. Quem só reparou nisso agora, com o escândalo de Mário Machado ter ido ao programa da manhã de Manuel Luís Goucha, tem andado muito desatento. Pouco importa se é informação ou é entretenimento, ou aliás por causa disso mesmo, é provável que estes programas moldem mais mentalidades do que todos os telejornais juntos.

É por isso que não vale muito a pena escudarmo-nos em questões menores, se aquilo é ou não é jornalismo e se o que aconteceu pode ser punido por leis e entidades reguladoras. Há muito que nos devíamos ter habituado a que quem recebe a informação recebe-a de igual forma - sobretudo por causa da homogeneização a que conduziram as redes sociais. Agora, se parece, é.

Essa consciência seria suficiente para despertar a responsabilidade e a ética. Dos que fazem infoentretenimento, evidentemente: deviam saber que nada do que fazem é anódino, muito menos uma rubrica em que entrevistam um neonazi. Mas, por tabela, também dos que fazem jornalismo e tantas vezes o apresentam como entretenimento - em programas com estética de show e retórica popular.

O problema dos programas de infoteinment, informação e entretenimento não é só deles. O jornalismo deixou, e para seu mal, de marcar essa diferença clara. As narrativas confundem-se, por vezes roçando a opinião, por vezes roçando a telenovela e o espetáculo.

Este é, aliás, um bom momento para pesarmos no que andamos todos a fazer com o poder que temos, sobretudo quando esse poder é tão elástico e subjetivo como o de comunicar e transmitir mensagens e ideias.

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