Naquela noite de Abril de 1970 todos os convidados de Richard Nixon sabiam que iriam assistir a um concerto memorável. Em palco, o mais famoso cantor de música country da América. Nenhum deles, porém, estava consciente de que a actuação de Johnny Cash na Casa Branca seria histórica, tão histórica que ainda há pouco lhe foi dedicado um documentário inteiro da Netflix. O Presidente queria que Cash cantasse Welfare Cadillac e Okie from Muskogee, duas músicas condizentes com as suas ideias políticas: a primeira satirizava os que viviam de subsídios estatais mas tinham carros de luxo à porta de casa; a segunda, escrita por Merle Haggard em apoio aos soldados no Vietname, falava de uma cidadezinha da América profunda onde não existiam drogas nem protestos pacifistas..Cash não acedeu aos desejos de Nixon e, ao invés, extraiu do seu repertório algumas músicas que colidiam frontalmente com a orientação política do Presidente. Entre elas, The Ballad of Ira Hayes, gravada em 1964 para o álbum Bitter Tears: Ballads of the American Indian. Erroneamente convicto de que tinha sangue cherokee a correr-lhe nas veias, Johnny envolvera-se a fundo no movimento de defesa dos direitos dos índios e, entre muitas outras acções, aquele disco foi o seu contributo para a causa dos nativos americanos. Bitter Tears seria censurado em muitos lugares da América, mas Cash reagiu em força: publicou um anúncio comercial de página inteira na revista Billboard, enviou milhares de cópias do disco a diversas rádios do país inteiro, questionou os locutores sobre o silêncio a que tinham votado o seu trabalho, que graças a este esforço subiu em flecha nas tabelas de vendas..Da autoria do cantor e compositor folk Peter La Farge, a balada mais célebre de Bitter Tears foi escrita em homenagem a Ira Hayes e ao seu destino trágico. Grandes nomes iriam cantá-la nos anos vindouros, de Pete Seeger a Bob Dylan, mesmo para quem não sabia - nem sabe - quem foi Ira Hayes. Todos o viram, poucos o conhecem. A sua figura aparece numa das mais famosas imagens do século XX, a fotografia dos soldados a erguerem a bandeira norte-americana em Iwo Jima, captada pelo repórter de guerra Joe Rosenthal e, naturalmente, galardoada com o prémio Pulitzer. Hayes é o último a contar do lado esquerdo da imagem, o homem que se esforça por tocar no mastro que os seus camaradas cravavam no chão vulcânico, tingido de morte. Dos seis marines que vemos na fotografia, três morreriam dias depois, numa das mais sangrentas batalhas da guerra do Pacífico. Ira Hayes foi um dos sobreviventes..Nascido em Sacaton, Arizona, em Janeiro de 1923, Ira Hamilton Hayes era um índio da tribo pima, filho de um veterano da Primeira Guerra e de uma professora de fortes convicções presbiterianas. A família sofreu duramente os efeitos da crise de 1929 e, três anos depois, como era frequente acontecer às comunidades índias, foi expulsa de sua casa e recolocada em Bapchule, onde Ira prosseguiu os estudos. Tímido e reservado, excelente aluno, leitor precoce e voraz, ao ouvir as notícias do ataque a Pearl Harbor confessou a um colega que estava determinado a alistar-se nos Marines. Foi o que fez em Agosto de 1942 e, em Outubro, voluntariou-se para os pára-quedistas, sendo enviado para o Pacífico não muito depois. O seu pelotão desembarcou na ilha de Iwo Jima a 19 de Fevereiro de 1945 e na manhã do dia 23, após violentos confrontos, tomou o monte Suribachi e aí ergueu a bandeira dos Estados Unidos, a primeira a ser desfraldada em solo japonês no decurso na Segunda Guerra Mundial. Dos quarenta e cinco soldados do pelotão de Hayes, só cinco sobreviveram à carnificina que se prolongou por vários dias, com baixas tremendas de ambos os lados..Em finais de Março de 1945, Hayes estava de regresso a casa. Entretanto, a fotografia de Rosenthal fizera furor na América e o Presidente Roosevelt, poucos antes de morrer em Abril desse ano, dera ordens para que a imagem fosse usada na campanha de venda das war bonds destinadas a custear o esforço de guerra. É no âmbito dessa campanha que Ira Hayes e os seus dois camaradas, que com ele levantaram a bandeira em Iwo Jima e sobreviveram ao massacre, serão recebidos como heróis em Washington pelo Presidente Truman. Não foi a última vez que se ouviria falar do seu nome na Casa Branca. Numa noite histórica de Abril de 1970, Johnny Cash cantá-lo-ia na cara de Richard Nixon..Depois de participar numa tournée de promoção das war bonds que o levou a várias cidades do país, Ira voltou ao Arizona. Em 1949 teve uma aparição fugaz no filme Sands of Iwo Jima, protagonizado por John Wayne, mas não conseguiu adaptar-se à vida civil nem fixar-se num emprego estável. Perseguido pelos fantasmas do Pacífico, mergulhou no álcool, tentativa vã de esconjurar a culpa que sentia por ter sobrevivido à guerra, ao contrário dos seus camaradas mortos em combate: "Eram melhores homens do que eu e não regressaram; e ainda menos foram à Casa Branca, como eu fui", disse um dia. Flags of Our Fathers, o conhecido filme de Clint Eastwood, insinua que estava afectado por stress pós-traumático, doença que no seu tempo era mal conhecida e tratada, e nem sequer tinha esse nome. Ira Hamilton Hayes, o soldado índio que erguera a Stars and Stripes no monte Suribachi, chegou a ser preso cinquenta e duas vezes por embriaguez em vários locais públicos da América. Em 1954, na cerimónia de inauguração do Memorial dos Marines no cemitério de Arlington, monumento que reproduz em bronze a icónica fotografia de Rosenthal, o Presidente Eisenhower saudou Ira Hayes como um herói de guerra. Interrogado no local por um jornalista, Hayes afirmou não apreciar tanta pompa e circunstância..Cerca de dois meses depois, o seu corpo seria descoberto nas imediações da cabana onde morava em Sacatona, a terra onde nascera. Na véspera estivera a beber e a jogar cartas até altas horas da madrugada, e houve uma altercação violenta com um índio da sua tribo. Oficialmente, a causa de morte foi atribuída a álcool em excesso, mas o seu irmão sempre insistiu que Ira fora vítima de homicídio, suspeita que as autoridades descartaram totalmente, não chegando sequer a abrir um inquérito ou a autopsiar o cadáver. Durante a guerra, os seus superiores deram-lhe o nome de código "Chefe Nuvem Cadente", que tragicamente se mostrou apropriado a uma existência terminada aos trinta e dois anos de idade..Ira Hamilton Hayes foi sepultado com as máximas honras militares no cemitério de Arlington, não longe da estátua que o imortalizara em bronze, inaugurada meses antes por Eisenhower, que nessa cerimónia teve a seu lado, de fato escuro e solene, o então vice-presidente dos Estados Unidos, Richard Milhous Nixon..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia