Moldávia. O duplo Natal
Mala de viagem (120). Um retrato muito pessoal da Moldávia.

A Moldávia não costuma fazer parte das prioridades dos viajantes. Os motivos de interesse não são muitos, para além das belas paisagens e de uma produção vinícola que muito orgulha os habitantes locais. A capital, Chisinau, tende para o caótico, imagem de um país que depende bastante dos seus vizinhos Roménia e Ucrânia e que tem milhares de imigrantes em Portugal. Porém, foi na Moldávia que passei o período de final de dezembro, coincidindo com o Natal, por uma circunstância especial. Depois da morte dos meus avós, em que passava desde criança essa quadra na casa do Alentejo, sempre plena de família, viajei a esse país, num dos anos posteriores, por saber que a Moldávia tem um Natal mais duradouro, o que é uma singularidade. Dura três dias em dezembro, porque o país comemora o Nascimento de Jesus Cristo de 24 a 26 de dezembro, mais um em janeiro. Os preparativos, que já são tradição, começam ainda em novembro e as mesas ficam cheias a partir desse mês, "à espera" do Pai Natal (Moş Crăciun). Porém, os ortodoxos reúnem-se para celebrar o dia de Natal a 7 de janeiro, só que a maior parte das pessoas celebra nas duas datas. O Natal é festejado em dias diferentes pelas igrejas das metrópoles moldavas e bessarabianas, devido à diferença entre os dois calendários (juliano e gregoriano). Precisamente este facto fez com que duas datas de Natal fossem feriado. A diferença entre as datas dos calendários aumenta três dias a cada 400 anos. Daqui a cem anos, vai chegar aos 14 dias. Hoje, os calendários continuam a coexistir. A primeira é usada pelas igrejas georgiana, de Jerusalém, sérvia e russa, enquanto a gregoriana guia os católicos e os protestantes. Um dos programas do hotel onde me encontrava, em Chisinau, consistia em proporcionar um dia junto de uma família moldava. A família Munteanu vivia num apartamento central da cidade. De manhã, fomos ao principal mercado de Natal, no centro da capital, que normalmente abre a 21 de dezembro. Houve várias apresentações de cantores e espetáculos teatrais no espaço público. Almoçámos no centro da cidade. Os meus anfitriões pediram "mamaliga" ou "hominy"", uma papa de farinha de milho, o verdadeiro prato nacional, porque o milho apareceu na Moldávia há 200 anos e tornou-se num dos ingredientes mais populares na alimentação. O prato também é benéfico para o corpo humano. Aliás, bem promovido pelo dono do restaurante La Placinte, onde tive uma ótima experiência. Já em casa, no final da tarde surgiram jovens a cantarem canções tradicionais. Eles visitam as casas até que a primeira estrela apareça no céu, que é uma tradição de Natal, em que as crianças cantam às portas das pessoas, com uma estrela representada por um esqueleto de madeira com tiras de papel colorido e que no centro tem um ícone de papel com a Natividade ou Jesus. Os meus anfitriões da casa retribuíram com doces e também dinheiro como gratidão aos cantores. Ao jantar, não fui obsequiado com bacalhau, obviamente, mas com um "buffet" de pratos tradicionais. O casal tinha três filhos menores, que já tinham escrito cartas ao Moş Crăciun, entregues aos pais para exercerem a sua influência junto dele. Naquele dia, os jovens tinham vestido fatos natalícios. Junto à Árvore de Natal, que simboliza a vida e a saúde para os moldavos, estavam as prendas, mas elas seriam divididas entre o 24, o 25 e o 26 de dezembro. Sabendo que eu estaria nessa noite, fui obsequiado com um "nai", que é um instrumento musical de sopro constituído por um conjunto de tubos sonoros de diferentes tamanhos, colados entre si pela ordem do seu comprimento numa linha côncava. Os tubos são afinados devido à inserção de cera de abelha dentro. Quanto mais cera um tubo tiver mais alto será o tom do som correspondente a esse tubo. Esta oferta foi feita minutos antes do fogo-de-artifício da meia-noite. Retribuí com um desenho abstrato da sobra de um café, feito num pequeno papel que, previamente, arranjara no hotel. Agradecendo a gentileza, voltei. Nesse regresso, vi um jovem a tocar o mesmo instrumento à porta do hotel. Reparei que o dele estava partido e que tal se notava quando atingia os sons mais agudos. Não pude deixar de lhe dar o meu, que tinha sido oferecido com amor, mas era o mesmo amor com que faria mais feliz aquele instrumentista. Fiquei ainda mais enriquecido, e ele, com certeza, com as notas mais afinadas. Já em Portugal, no dia 7 de janeiro, recebi dos meus anfitriões, pela Internet, uma frase em romeno, a língua oficial da Moldávia: "Mai bine decât toatecadourile de sub copac a fost prezența lui în casa unei familii fericite" (Melhor do que todos os presentes por baixo da árvore de Natal foi a sua presença na casa de uma família feliz). Foi para mim um duplo Natal.
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Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.