Godard aos 90
Jean-Luc Godard, o cineasta mais discutido da história, completou 90 anos no dia 26 de novembro. Seu primeiro e principal filme, Acossado (1960), fez 60 anos noutro dia. O título original, À Bout de Souffle, significa sem fôlego, em francês. Mas haja fôlego para tantas velinhas, porque Godard terá de soprá-las sozinho.
Os realizadores que, com ele, formaram a nouvelle vague - François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette, Agnès Varda, Jacques Demy, Chris Marker, Jean-Gabriel Albicocco, Louis Malle, Alain Resnais, Eric Rohmer, Jean Rouch - todos já se foram, assim como suas estrelas Jean Seberg, Anna Karina e Anne Wiazemski, o fotógrafo Raoul Coutard, os músicos Martial Solal e Michel Legrand, o produtor Georges de Beauregard. Ah, sim, o maior astro que ele revelou, Jean-Paul Belmondo, continua entre nós - mas ainda serão amigos?
Entre 1958 e 1968, com as novas câmaras mais leves e mais ágeis, que permitiam filmar na rua e com luz natural, com os roteiros escritos no verso de maços de Gitanes minutos antes de filmar, e com uma súbita audácia temática, aqueles artistas libertaram o cinema das amarras industriais, da obrigação de filmar em estúdio para exibição nos grandes circuitos, e fizeram dele uma arte incontrolável. O clima político e estético da época ajudava, com toda uma geração de jovens intelectuais ávida por uma cultura que pudesse chamar de sua, em contraposição à dos mais velhos.
Ali nasceram os filmes independentes, de produção barata, ideais para os pequenos cinemas de arte - e, nestes, exercia-se todo um novo padrão de costumes, comportamento e até moda. Moda? Sim. No Rio, por exemplo, para os rapazes, eram a camisa caqui, com mangas arregaçadas e fraldas para fora, calça jeans e sandálias de couro; para as raparigas, minissaia ou calça também jeans, só que de cor gelo. Em comum entre eles, a paixão por aqueles filmes "difíceis" e a volúpia de se atirarem um ao outro logo depois de encerrada a sessão - e a dificuldade de achar um lugar para isso...
Com Godard à frente, a nouvelle vague inspirou o surgimento de "cinemas novos" tanto na Europa, inclusive nos asfixiados países socialistas, quanto na América Latina, quase toda ela também vivendo sob ditaduras. O do Brasil foi, durante anos, um campeão de prémios em festivais de cinema, como os de Cannes, Veneza e Berlim, com os filmes de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Paulo Cesar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, o moçambicano Ruy Guerra e outros.
O curioso é que, sendo a maioria desses realizadores originários do Rio e com vasta circulação internacional, o cenário que eles preferiam para seus filmes era o longínquo Nordeste brasileiro - o sertão, com sua paisagem estéril, a miséria acachapante e a memória dos antigos bandoleiros que o infestavam, os cangaceiros. Mas a estética desses filmes, com sua fotografia em preto-e-branco também árida, de céus chapados e sem definição, e a indispensável câmara na mão, era uma herança da nouvelle vague - leia-se Godard.
A nouvelle vague, queira-se ou não, foi uma criação de Godard. Ele pode não ter sido tão eficiente quanto Truffaut como aglutinador de talentos, mas foi o seu grande catalisador - o que despertou tais talentos. Muitos daqueles criadores queriam ser Godard, mas era difícil conviver por muito tempo com suas radicalizações nem sempre claras. Godard não parava e, por motivos políticos, estéticos ou mesmo comerciais, todos os seus colegas de geração romperam com ele, alguns para sempre. Não que Godard se importasse. Quando isso acontecia, ele apenas os trocava por outros jovens cineastas que descobria na Alemanha, na Polónia e até no Brasil - Glauber Rocha foi um deles. Formava com eles um novo séquito e continuava a sua catequese. Mas esses também acabavam por se afastar. Como Godard se sentirá hoje, sem um único contemporâneo por perto?
O grosso de seus adoradores éramos nós, cinéfilos e universitários, muitos com um secreto desejo de virem a ser realizadores ou, se impossível, contentando-se com a perspetiva de se tornarem críticos de cinema. Enquanto isso não acontecia, vivíamos um delicioso ritual em torno de Godard.
Primeiro, ficávamos sabendo que um novo filme dele estreara em Paris. Dali nos embriagávamos com a leitura dos artigos a seu respeito, contra ou a favor, em revistas francesas como Cahiers du Cinéma, Positif e Téléciné. Como os filmes demoravam a chegar por aqui, tínhamos tempo para aprender tudo sobre ele antes de vê-lo. Até que, meses ou até anos depois, íamos finalmente assistir a ele - cinco, dez vezes - num cinema de arte. E, à saída de cada sessão, levar a madrugada discutindo-o ao redor de uns copos. Era como se vivêssemos em função de Godard.
E então, de repente, tudo mudou. Alimentados ano a ano, desde 1961, por À Bout de Souffle, Une Femme Est Une Femme, Vivre sa Vie, Le Mépris, Les Carabiniers, Bande à Part, Alphaville, Pierrot le Fou, La Chinoise e outros, chegamos a 1968 sem saber que, no auge de seu prestígio, Godard estava se despedindo do cinema - ou do que ele agora considerava uma arte morta. Despedindo-se do cinema comercial, claro, porque, na verdade, continuou a filmar furiosamente, só que para mídias exóticas e obscuras. No fundo, estava sendo coerente com o seu processo. Mas 1968 foi o fim de muitas coisas e, como se pudéssemos passar também sem Godard, nem todos o seguimos.
Eu, por exemplo, fui tratar da vida e nunca mais vi nada que ele fez. Conservei-me fiel aos primeiros Godards, aqueles em que, a cada filme, ele parecia reinventar o cinema. Sim, eu sei que muitos de seus filmes a partir de 1980, como Je Vous Salue, Marie ou Prénom Carmen, são tidos como formidáveis. Mas, com todo respeito, não pretendo vê-los.
Godard também acharia isso coerente. Para ele, o cinema não precisava de plateia.
Jornalista e escritor brasileiro