O descalabro económico e a rutura da paz social na Venezuela - que nos impressiona ainda mais porque o carácter quase exemplar daquele país, sobretudo no quadro sempre adiado da América Latina, não vem da era dos nossos pais ou antepassados, antes se constitui como uma memória própria - ameaçam tocar-nos mais de perto do que parecia lógico e possível. O êxodo começou há algum tempo e a comunidade portuguesa, que inclui os lusodescendentes, não pode escapar-lhe. Começamos a ouvir falar em "planos de contingência" que alguns, em nome uma oportunidade (ou oportunismo?) para angariar dividendos políticos, reclamam ver revelada publicamente, sem se darem ao trabalho de pensar que, em matérias de salvação e de resgate, vale mais ser discreto e eficaz. De qualquer forma, e embora deva sempre falar mais alto o valor da vida (e, se possível, da qualidade de vida), os números impressionam: 400 mil cidadãos nacionais, estimativa que triplica se entrarem na estatística filhos e netos daqueles que decidiram emigrar. Por aquelas paragens, depois do Brasil, foi precisamente na Venezuela, com quase 32 milhões de habitantes até há dois anos, que mais portugueses se fiaram..A dimensão do problema não tarda a remeter-nos para o que vivemos há pouco mais de quatro décadas, quando assistimos ao "regresso" de um milhão de pessoas que vivia por África, sobretudo em Angola e em Moçambique. Muitos deles eram mais refugiados do que "retornados", até porque, para um largo quinhão, poucas ou nenhumas memórias e vivências se guardavam do retângulo à beira-mar plantado onde, quase de repente, muita gente se viu forçada a um recomeço ingrato. Não se pretende aqui rediscutir a questão da descolonização, da sua forma e do seu alcance, até porque o tempo - muito sábio na prática da "medicina natural e curativa" - se encarregou de ir cicatrizando feridas e despeitos. Mas, fruto de uma juventude ativa, recordo-me bem de testemunhar a chegada de homens de olhar perdido, de mulheres e crianças assustadas ou desesperadas, de famílias em aflição, que se interrogavam quanto aos horizontes que, daí em diante, as aguardavam..Muita água - e muita lágrima - correu sob as pontes, de então para cá. Tivemos direito a quase tudo, até a ouvir um chefe de governo discorrer sobre o ato de emigrar, que deveria sempre ser um ato voluntário e de preferência mais baseado numa saudável sede de experiência e de "mundo" do que na necessidade, como fórmula resolvente. Mas não nos deixemos iludir quanto à violência que está subjacente a um "regresso" compulsivo - muitas vezes ao desconhecido -, a interromper aquilo que se entendia como o curso natural da existência. Como continuo a acreditar no poder dos livros, mesmo os de ficção, como alertas para a realidade, como ecos do que se pensa e se sente, atrevo-me a recomendar dois, para quem queira aperceber-se do choque e dos dramas de quem é empurrado para uma situação semelhante, mesmo salvaguardando o chavão, verdadeiro, de que cada caso é um caso. Primeiro, Os Refugiados (ed. Elsinore), em que um cidadão norte-americano não por acaso nascido no Vietname, o professor catedrático Viet Thanh Nguyen, junta histórias escritas durante duas décadas e que desaguam no assunto. Depois (ou talvez antes, pela proximidade), esse magistral O Retorno (ed. Tinta-da-China), de Dulce Maria Cardoso, em que a autora se transforma na voz de um adolescente que acompanha uma família fragmentada e destroçada de Luanda a Lisboa. São muito mais do que objetos de circunstância e, infelizmente, acabam para contribuir para uma conclusão triste: se, hoje, acontecer algo de similar, tudo terá um desfecho mais difícil e mais conturbado. Porque, fruto de muitos erros públicos e privados, nos tornámos mais crispados, mais individualistas, menos solidários. Gostava de ser desmentido, mas os sinais exteriores passam a ideia de que deixámos mesmo cair a divisão "do mal pelas aldeias" em favor do "salve-se quem puder".