Impressões sobre o próximo presidente
Jair Bolsonaro concedeu, por telefone, duas entrevistas ao DN. Fernando Haddad uma, presencial. Por isso, assim como a anterior chefe de Estado eleita, Dilma Rousseff, abrira as portas do Palácio do Alvorada nos últimos meses do seu consulado para o receber, o próximo presidente do Brasil, seja ele qual dos dois for, já falou a este jornal.
Aliás, se por um golpe de teatro as sondagens estiverem todas enganadas e for o atual terceiro classificado, Ciro Gomes, o vencedor da eleição, também ele, por e-mail, expôs as suas ideias aos leitores do DN.
Como estamos a referir-nos ao líder do quinto maior país do mundo em área e população, e da oitava economia do planeta, justifica contar algo dos bastidores dessas conversas.
Na primeira vez em que Bolsonaro foi entrevistado pelo DN, ainda em agosto de 2015, foi apresentado como "talvez, o deputado mais à direita do Brasil". Embora tivesse confidenciado, logo no início da conversa, que o desenrolar da campanha presidencial de 2014 o havia levado a decidir avançar para as eleições do então ainda longínquo outubro de 2018 - "porque se eu já tivesse concorrido em 2014 teria desfeito a Dilma nos debates", afirmou -, o mote da entrevista era apenas o seu radicalismo e não o seu, na altura ainda desconhecido, potencial eleitoral.
A conversa terá sido anterior à exibição dos documentários da atriz americana Ellen Page, um, e do ator inglês Stephen Fry, outro, a respeito de homofobia que tornaram Bolsonaro conhecido no mundo anglo-saxónico. E decorreu sete meses antes da célebre dedicatória na votação do impeachment ao chefe dos torturadores da ditadura militar Brilhante Ustra.
Como era, portanto, um parlamentar relativamente anónimo, o contacto foi facílimo, até porque os seus assessores, ligados sentimentalmente a Portugal, foram muito gentis. Além dos temas do costume, da homossexualidade, do machismo, da apologia das armas, abordaram-se questões políticas e históricas, às quais o capitão respondeu naquele tom, sem pausas, que os acólitos chama de "convicto" e os opositores de "colérico".
"Foi o PT que criou historinhas caluniosas de suposta ditadura." E também: "Qual é o limite entre tratamento enérgico e tortura? A esquerda fala em tortura para buscar compaixão, votos e poder. Os chamados perseguidos políticos eram treinados em Cuba, sob orientação da União Soviética, para impor o terrorismo no Brasil. Guantánamo? Aqueles fantasiados com coisas na cabeça é tortura?"
Um único momento de tensão: quando ouviu do entrevistador o termo "nazi" (ou "nazista", como se diz no Brasil) advertiu de imediato que qualquer referência à ideologia de Hitler valeria processo.
Passados uns minutos, anunciado o fim da conversa, Bolsonaro de um momento para o outro desliga um interruptor, ou guarda o revólver no coldre, e surge descontraído. "Terminou? Olhe, ó João, mande um abração para o seu patrício Cristiano Ronaldo, que craque, hein?"
Na segunda entrevista, em março de 2017, já pré-candidato e apenas atrás de Lula da Silva nas sondagens, seria natural que o acesso a Bolsonaro fosse mais difícil. Pelo contrário, bastou telefonar para o tal assessor amigo de Portugal para ter, na hora, o deputado ao telefone. "Quem fala? Ah, do DN, diga lá." O ex-militar reforçou então a ideia de "elevar Brilhante Ustra a herói nacional" e declarou-se "apoiante e admirador de Trump".
Já Fernando Haddad sugeriu que, em vez de telefónica ou eletrónica, a conversa com o DN fosse cara a cara. No dia combinado, lá estava ele no seu pequeno gabinete do Insper, universidade privada situada num bairro nobre de São Paulo, que reúne nomes importantes do liberalismo económico brasileiro entre o seu corpo docente. Por alguma razão, Lula o chamou de "petista [militante do PT] com cara de tucano [militante do PSDB]".
Haddad, que como bom professor de Ciência Política se quis inteirar da geringonça portuguesa a meio da conversa, admitiu que o PT não avançou na agenda republicana. "Avançámos muito na agenda económica e social durante o nosso governo mas não na agenda republicana; na agenda contra a corrupção até acho que avançámos, porque a Lava-Jato é uma filha direta dos instrumentos que criámos, mas na reforma do Estado, do sistema político, ficamos aquém", afirmou. "É fácil governar o Brasil, com este sistema político, sem cair no clientelismo? Não, não é. Mas temos de admitir que, no mínimo, tentamos pouco."
Era Haddad a ensaiar uma autocrítica que o PT, puro e duro, sempre recusa. Por isso, desde 2004 o ex-prefeito de São Paulo vive relação de amor e ódio (mais ódio) com as estruturas do seu partido - só a admiração de Lula pelas suas qualidades lhe vem valendo.
Jair ou Fernando, Bolsonaro ou Haddad, o paulista de Campinas ou o paulistano de São Paulo, o militar na reserva ou o académico, o descendente de italianos ou o filho de libaneses, o radical ou o moderado - qual deles vai afinal governar o quinto maior país do mundo em área e população e oitava economia do planeta? Está quase a saber-se.