Não sou pessimista se afirmar que vivemos tempos de inquietação. À semelhança do que acontece com as alterações climáticas, em que começa a haver uma consciencialização súbita de que estas serão, afinal, bastante mais próximas, também a nossa perceção do potencial perigo das atuais convulsões do mundo para a democracia e as liberdades ganha contornos mais nítidos. Essa inquietação não é necessariamente má. Se lhe conseguirmos consignar o escopo de contribuir para a reflexão coletiva, já terá tido utilidade..O exemplo prático e mais recente dessas convulsões é, quanto a mim, a marcha dos migrantes hondurenhos, considerada já por muitos a maior marcha de migrantes registada. Enquanto pais, seres humanos e até enquanto portugueses conscientes da nossa diáspora e da nossa tradição de demandar mundo em busca de vida melhor, poucos ficarão indiferentes aos pais que carregam filhos em busca de uma felicidade que, para demasiados, será eternamente apenas a do momento em que sonham. Numa nota de otimismo, acredito ainda que esta capacidade de não ficarmos indiferentes e criar empatia coletiva com a dor alheia pode fazer a diferença e constituir esperança..Estão à porta os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Apesar de septuagenária, a Declaração continua jovem, no sentido em que as suas palavras (e a necessidade delas) continuam atuais. É imperativo que nos interroguemos globalmente se o 28.º artigo da Declaração, que consagra o direito a uma "ordem social e internacional em que os direitos e as liberdades proclamados nesta declaração se tornem plenamente efetivos" passou da palavra à prática. E como articular o direito dos migrantes à felicidade? Era o que faltava que fosse negável pelo azimute em que nasceram ou por questões de mera nacionalidade..Como operacionalizar o pressuposto de felicidade de que a Declaração Universal está imbuída? Um começo é a coletivização da responsabilidade e da reflexão, no sentido da interiorização de que se a indignação, em democracia, é um direito, a sua defesa é um dever..Vivemos num mundo que ainda não valoriza em pleno a vida humana. A par da indiferença à diferença, continuamos a assistir à normatização e à padronização que muitas vezes matam o talento e a criatividade e cultivam a insolidariedade para com a diversidade. A par de 70 anos de ensino da história e do contexto de guerra e fascismo que matizaram a génese da Declaração Universal, eis que ressurgem contextos sociais parecidos e que são verdadeiras incubadoras da tragédia..Madeleine Albright dá o exemplo com o seu (bright!) e recente livro Fascismo - Um Alerta. Ao dissertar sobre os tempos em que vivemos e a semelhança destes com a altura em que os Estados Unidos se retiraram da cena global, nas décadas de 1920 e 1930, afirma o seguinte: "Ainda não chegámos lá, mas estes parecem ser já sinais ao longo de uma estrada para regressar a uma era em que o fascismo encontrou alimento para si e as tragédias individuais se multiplicaram por milhões." Lutemos, pois então. Por mais e sempre melhor democracia e até à felicidade..Deputada do PS