Mais ou menos desde o início que os finais são problemáticos. Os criadores de ficções - tal como fumadores, amantes e jogadores de casino - sentem uma ansiedade constante sobre como e quando parar..Durante muito tempo, os finais consistiam apenas numa distribuição de dividendos: heróis premiados, vilões punidos, intrigas expostas, obstáculos ultrapassados, lições aprendidas. As comédias acabavam quando alguém se casava, as tragédias quando alguém morria. Esta divisão utilitária prosseguiu durante a era de ouro do romance realista, o séc. XIX, onde as Lizzie Bennets ficavam com os seus Mr. Darcys e as Annas Kareninas com os seus carris de ferrovia..Tchékhov terá sido o primeiro a descartar deliberadamente tanto a herança classicista como a nossa predilecção aparentemente congénita por simetrias, pontas atadas e pirâmides de Freytag - e a sugerir de forma sistemática que uma ressaca de insatisfação pode ser satisfatória. A saída que encontrou para o labirinto de epílogos e epifanias legou-nos o "final em aberto" (nas palavras memoráveis de Virginia Woolf, ao acabarmos de ler um conto de Tchékhov, sentimos que "uma canção chegou ao fim sem termos ouvido o acorde esperado"). O modernismo descobriu nele a recusa de recompensas ao leitor, mas também a serenidade dos "ciclos" autocontidos. Ernest "A Chuva Caía" Hemingway pareceu descobrir nele outra lição: que os últimos parágrafos de qualquer história são a melhor oportunidade possível para oferecer ao leitor um boletim meteorológico..Em todo este circuito de insatisfações e regenerações, o desconforto latente sempre foi o mesmo: com a própria ideia de um "final", que no fundo é uma suspensão artificial de um artifício até aí laboriosamente mantido..Como demonstram até alguns dos melhores romances literários, um "bom final" para ficções de larga escala é uma raridade. Para séries longas de televisão, o desejo é ainda mais utópico. Para já, o problema é prático: nenhum romance demora nove anos a ler. Numa série longa com um mínimo de ambições narrativas, o argumento vai pedindo créditos sucessivos à nossa atenção, oferecendo a promessa de um desenlace como garantia. Um dos problemas de A Guerra dos Tronos (que, paradoxalmente, foi também uma das chaves do seu sucesso) é ter fundado o seu apelo, desde o início, num conjunto de promessas contraditórias. Se por um lado se autopromoveu como um antídoto subversivo às mais estafadas convenções do género conhecido como "fantasia heróica", por outro delegou essa função apenas à disponibilidade patológica para condenar à morte qualquer personagem. Este tipo de esforços subversivos precisa de autoridade suficiente para que não confundamos o processo a que submete as convenções - adoptando, descartando, misturando, subvertendo - com um processo de submissão às mesmas. A Guerra dos Tronos nunca conseguiu ganhá-la, porque fazê-lo implicaria alienar uma porção substancial do seu público e descartar metade do seu interesse. E, no essencial, a história nunca deixou de se organizar segundo os princípios supostamente subvertidos: missões mágicas, combates entre o Bem e o Mal, profecias sobre redentores, e patinhos feios que descobrem na verdade ser herdeiros legítimos..via GIPHY.Fidelidade a este conjunto de promessas exigiria que um final artisticamente satisfatório fosse simultaneamente conservador e revolucionário, surpreendente e anticlimático, entusiasmante e aborrecido. O que a última temporada já sugeriu é que a prioridade será sempre a surpresa - até porque a surpresa (e a sua vulnerabilidade à sabotagem por spoilers) é hoje um dos principais mecanismos promocionais deste tipo de artefactos culturais. O objectivo é convencer o máximo número de espectadores a não saber algo - até à altura certa para ficarem a saber - e contar com a tolerância adquirida pela exposição de longa data. O hábito habitua: passado algum tempo, deixamos de ver a imaginação de terceiros e passamos a ver o nosso próprio investimento (que mais não seja de tempo), o que nos leva a absolver o enredo das suas próprias falhas..Quando as telenovelas começaram a descobrir os micromistérios enquanto mecanismo para reter e amplificar a atenção do público - o "quem matou JR?" de Dallas, o "com quem vai ficar a Viúva Porcina?" de Roque Santeiro - tornou-se comum filmarem várias soluções alternativas, para se blindarem contra fugas de informação. Um efeito colateral desta apólice de seguro foi reforçar a contingência de tudo o que acontecia: nenhuma das acções das personagens era justificada pelas suas circunstâncias específicas. Ao contrário das séries ditas de "prestígio", o modelo das telenovelas é económico e não criativo: personagem x tem de fazer y e chegar a z porque é disso que o enredo precisa. Consequentemente, os problemas tornam-se logísticos em vez de narrativos..O impacto da pura surpresa é mais difícil de manter numa era em que fenómenos culturais desta dimensão arrastam Bibliotecas de Babel atrás de si. Na internet, todas as soluções possíveis para encerrar a série já foram testadas e exploradas. Algures - num artigo, num fórum, num tweet - o eventual desenlace já foi rigorosamente descrito, por acidente. A única solução viável e fiel à sua verdadeira natureza seria não artística nem narrativa, mas puramente económica: o modelo das intermináveis soap operas inglesas, como Eastenders (que dura há 34 anos) e Coronation Street (que dura há 59), em que A Guerra dos Tronos se prolongaria para sempre, reciclando enredos, regenerando elencos, e protelando indefinidamente qualquer ideia de resolução. Uma série em que os argumentistas, com a coragem das suas convicções, à pergunta "o que dizemos ao Deus do fim?" responderiam heroicamente: "Hoje não."