Daniel, marinheiro da ilha do Corvo, embarcado no Pequod toca bandolim a horas mortas, na vã tentativa de enganar o terror que lhe infundem tanto o temível Capitão Ahab como o enorme cetáceo que este persegue, Moby Dick. Com ele seguem outros dois conterrâneos seus, arpoadores de profissão, já que Herman Melville estava bem consciente da importância dos açorianos na saga da baleação: "Não poucos destes caçadores de baleias - escreverá - são originários dos Açores, onde as naus de Nantucket que se dirigem a mares distantes atracam frequentemente, para aumentar a tripulação com os corajosos camponeses destas ilhas rochosas." O escritor norte-americano sabia do que falava: ao publicar, em 1851, a que hoje é considerada a sua obra-prima (embora na época tivesse sido um tal fracasso que lhe pôs termo à carreira literária), recordava a sua juventude aventureira, nomeadamente os 18 meses passados a bordo do baleeiro Acushnet, no Atlântico, da Gronelândia ao cabo Horn..Não foi o único nome grande da literatura mundial a reconhecer a mestria dos baleeiros portugueses. Em Lobos do Mar (único livro seu de ambiência americana), o britânico Rudyard Kipling também fará de um pescador português, provavelmente açoriano, um dos heróis da sua história passada na caça à baleia. Manuel Fidelio estabelece amizade com um menino rico e mimado, embarcado no seu navio por vontade corretiva do pai, ensina-lhe coisas do seu mundo muito particular e, finalmente, oferece-se em sacrifício para salvar o navio acometido por forte tempestade. Adotado ao cinema por Victor Fleming, em 1938, valeria a Spencer Tracy o seu primeiro Oscar de melhor ator..Os armadores da Costa Leste dos Estados Unidos sabiam bem que ninguém conhecia melhor e há tanto tempo os segredos da caça à baleia como os açorianos. A primeira referência a esta atividade nos mares do arquipélago remonta à primeira metade do século XVI, quando o poeta Gaspar Frutuoso a ela alude no livro Saudades da Terra, dizendo que, ao verem dar à costa da ilha de São Miguel um grande peixe, os pescadores tomaram-no por uma baleia ou cachalote e "usando cordas puxaram-no para terra". Abundante de gordura, cada animal servia para alimentar várias indústrias, dos sabões e sabonetes aos fertilizantes da terra, servindo os ossos para o fabrico de pentes, escovas, artesanato e, já no século XIX, de espartilhos femininos cuja flexibilidade era assegurada pelas chamadas "barbas de baleia", longas placas flexíveis existentes na boca destes animais, muito ricas em queratina..Na segunda metade do século XVIII, começaram a chegar aos Açores, nomeadamente às Flores, ao Pico e ao Corvo, navios baleeiros vindos da Costa Leste norte-americana. Partiam de Nantucket, New Bedford ou Martha's Vinyard e paravam para reparação e abastecimento, mas também para recrutar jovens marinheiros. Alguns partiam para não mais voltar, estabelecendo-se do outro lado do Atlântico, outros regressavam depois de algumas campanhas em alto-mar. O movimento era tal que, em 1811, 50% dos navios que faziam escala nas Flores tinham bandeira dos então jovens Estados Unidos e estavam envolvidas na caça à baleia..Muitos dos recrutas não passavam de adolescentes, adestrados desde crianças a estar de vigia num sítio alto, munidos de binóculo. Alguns subiam também para os botes, armados de arpões e lancetas, a acompanhar os homens numa luta mortal com animais gigantescos, que frequentemente acabava em tragédia, no fundo do mar. Para camponeses habituados a retirar da terra um escasso sustento, a baleia, uma vez desmanchada, era uma oportunidade rara de melhorar a vida das suas famílias por alguns meses..Uma vez a bordo dos baleeiros americanos, estes rapazes descobriam técnicas mais sofisticadas, não apenas de caça, mas também de tratamento da carne, depois transformada em óleo, ou de extração do espermacete (assim designado por erradamente ter sido confundido com esperma), substância cerosa concentrada na cabeça dos cetáceos e então muito procurada para o fabrico de velas, cosméticos, aditivos de motores, glicerinas, vitaminas e dezenas de outros compostos farmacêuticos..Os Açores beneficiaram desse êxodo? Em meados do século XIX, o historiador local Francisco Ferreira Drummond dizia que não, lamentando que muitos desses baleeiros contratados não trouxessem para a terra natal indústrias capazes de competir com os estrangeiros, deixando que, por essa época, a indústria da baleação nos mares açorianos fosse completamente dominada pelos americanos. Mas essa situação começaria a modificar-se no terceiro quartel do século XIX, com a abertura de armações locais, muitas delas efetivamente criadas por homens regressados dos Estados Unidos..A importância da baleação para a economia (e até para o imaginário) do arquipélago está bem patente em obras literárias bem posteriores a Moby Dick como Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, A Mulher de Porto Pim, de Antonio Tabucchi, ou Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio. Nesse mar, que Brandão descreve como feudo "de corsários, baleias e milagres", foram mortos, entre 1896 e 1949, cerca de 12 mil cetáceos. Proibida por diretivas comunitárias desde 1987, este género de caça, particularmente sangrento, foi há muito substituído pela pacífica observação dos animais em liberdade. Do passado restam as lendas, contadas em noites de inverno, de um lado e de outro do Atlântico.