"A paz faz-se entre pessoas." Quando judeus e árabes trabalham lado a lado
Ashraf Jabari chega atrasado. Pede desculpas. Ficou preso na fronteira, nos checkpoints. O caso não é estranho para o empresário palestiniano de Hebron, habituado a ir até território israelita para fazer negócio. "A relação comercial com Israel é sólida", explica em árabe, traduzido para inglês por um colaborador. Ao seu lado sentado à mesa está Yossi Dagan. O presidente do Conselho Regional de Shomron, na Cisjordânia, garante que "pessoas como Jabari, que é nosso amigo, e outros líderes palestinianos que trabalham connosco, são uma oportunidade para mudar as coisas".
A fazer um esforço visível para combater uma constipação, Dagan garante que, apesar da tensão constante entre israelitas e palestinianos, dos protestos contra a construção de mais colonatos na Cisjordânia, que a lei internacional não reconhece, "acreditamos na paz entre pessoas, não na paz entre papéis". E explica porquê: "Após 26 anos de tentativas para chegar à paz, que só trouxeram choro e sangue, chegou a altura de trazer a paz de baixo para cima."
Lá fora ouvem-se aviões a passar. Estamos na Área C da Cisjordânia, aquela que os Acordos de Oslo definiram que estaria sob controlo quase total de Israel. A Área C, desenhada de forma a incluir os colonatos judaicos, cobre mais de 60% do território da Cisjordânia e ali vivem quase 400 mil israelitas e cerca de 300 mil palestinianos. A Área A cobre 18% da Cisjordânia e a B cerca de 22%. Na primeira, os palestinianos têm controlo total civil e militar, na segunda os palestinianos têm o controlo civil, enquanto a segurança é garantida em parceria entre palestinianos e israelitas. Para entrar em Israel, os quase três milhões de palestinianos que vivem na Cisjordânia têm de atravessar o muro que divide os dois territórios através dos tais checkpoints.
Aquela é uma terra onde as fábricas se multiplicam. E não faltam sítios onde judeus e árabes trabalham lado a lado. "Ambos os povos estão aqui. Vivemos juntos. E se Deus, Alá ou assim nos juntou, temos de aprender a viver juntos", garante Yossi Dagan. O ativista que se destacou ao apelar à desobediência civil em 2005 quando Israel, além de retirar da Faixa de Gaza, saiu também de quatro colonatos na Cisjordânia. Um deles era Homesh, onde Dagan vivia.
Os dois homens vão concordando. O próprio Jabari, um dos poucos empresários palestinianos presentes no Bahrain no workshop promovido pelos EUA para pôr a economia a tentar encontrar uma solução para o conflito, critica a liderança palestiniana, dividida entre a Autoridade Palestiniana que controla a Cisjordânia e o Hamas, o grupo integrista que desde 2007 controla a Faixa de Gaza. "Em cada Estado do mundo há um governo, aqui há dois. Os conflitos entre o Hamas e a Fatah [que controla a AP] deixam os palestinianos de rastos. Os colonos judaicos são o menor dos seus problemas", afirma. Palavras polémicas, com as quais muitos não concordarão. Mas Jabari está convencido de que a "melhor solução, a única solução" para o que se costuma resumir a conflito israelo-palestiniano, é a existência de um só Estado. Uma ideia apoiada pelo presidente americano, Donald Trump, e que parece agora seduzir o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu. "É impossível que um líder israelita permita aos palestinianos um Estado nas fronteiras de 1967. E do lado palestiniano ninguém aceitará uma solução que seja menos do que isso", garante Jabari. Além disso, "cada vez mais vivemos juntos, trabalhamos juntos". Claro que um só Estado também levanta questões, afinal isso deixaria a maioria judaica ameaçada. Algo inaceitável para os líderes israelitas.
A relação entre Jabari e Dagan há muito ultrapassou os negócios, com os dois homens a já terem jantado algumas vezes na casa um do outro. Mas que língua falam nesses momentos? A resposta sai em hebraico a Jabari: "Falamos hebraico porque é a língua dos nossos primos." E para rematar a conversa, os dois despedem-se com um aperto de mão e umas palmadas nas costas, não se fazendo rogados em posar para a fotografia.
Com as notícias a darem quase sempre conta dos momentos de tensão entre israelitas e palestinianos, e a destacar a discriminação de que são alvo os cidadãos árabes de Israel (aqueles que em 1948 decidiram ficar no território do novo Estado. Hoje são perto de dois milhões, mais de 20% da população de Israel) não falta quem queira provar que não tem de ser assim. Como a fábrica da SodaStream, a empresa famosa pelas máquinas que permitem transformar em casa água da torneira em água com gás ou fazer refrigerantes, que nas suas novas instalações no deserto do Neguev tem 130 palestinianos entre os 2200 funcionários. Muitos deles vieram quando mudaram a fábrica da zona industrial de Mishor Adumim, junto a um colonato judaico na Cisjordânia. A empresa estava a ser alvo de boicote liderado pelo movimento BDS, que fez que a atriz Scarlett Johansson pedisse para deixar de ser embaixadora da Oxfam, após ter aceitado ser rosto da SodaStream.
Basta entrar nas instalações, seja na zona do fabrico das garrafas, na linha de montagem das máquinas ou naquela onde são metidas em caixas para serem enviadas para todo o mundo, Portugal inclusive, para ver que por ali convivem homens de quipá e mulheres de véu islâmico, ao lado de beduínos das comunidades vizinhas. "Temos quatro salas de oração para muçulmanos e uma sinagoga. E só não temos uma igreja porque ninguém pediu", explica Clara Anselem, relações-públicas da empresa. O refeitório também permite a cada um escolher a comida adequada às suas crenças, kosher, halal, vegetariano, etc. - com uma zona reservada aos laticínios e outra às carnes. E Clara garante que ali nunca houve nenhuma ameaça e, por isso, não têm sequer detetores de metal na fábrica. "Vivemos numa paz económica", ri-se.
Podemos encontrar um cenário semelhante no centro comercial que o empresário Rami Levy abriu em Atarot, um subúrbio de Jerusalém Oriental. Nos corredores há judeus de quipá às compras ao lado de famílias palestinianas ou árabes-israelitas com os filhos dentro do carrinho. A ideia do empresário, dono da terceira maior cadeia de supermercados de Israel, era ter um centro comercial que não só servisse israelitas e árabes, mas que também tivesse algumas lojas geridas por palestinianos. Claro que não faltaram tentativas de boicote por parte das autoridades palestinianas, mas essa não foi a primeira vez que os seus clientes sofreram pressões para não comprarem num estabelecimento de um israelita. Além de 120 mil árabes e 90 mil judeus residentes nos bairros a norte de Jerusalém Oriental, o centro serve ainda milhares de palestinianos que todos os dias vão trabalhar para a cidade, vindos da Cisjordânia.
De pé no monte do Precipício - a colina junto a Nazaré onde os cristãos acreditam que Jesus desapareceu, levado pelos anjos de Deus -, Yoseph Haddad pede desculpas por estar de óculos de sol, essenciais ao sol forte do meio-dia. Ao seu lado está a ativista Lorena Khateeb, uma drusa de 21 anos que explica como a sua comunidade, que se separou do islão xiita no século XI, se espalha hoje por vários países, destacando-se pela lealdade ao Estado que os recebe. De tal forma que em Israel têm presença forte nas Forças Armadas, como o pai e irmão de Lorena, militares de carreira.
Tímida, a drusa deixa Yoseph falar. O jovem árabe-israelita , que parece bem menos do que os seus 34 anos, lembra que Nazaré é um bom exemplo da coexistência dentro de Israel. Com 80 mil habitantes, Nazaré é a capital árabe de Israel, por estes serem a maioria dos habitantes - 70% muçulmanos, 30% cristãos. Yoseph nasceu em Haifa mas vive ali desde os 3 anos. Cristão, lembra como em criança costumava jogar futebol com os outros meninos, fossem drusos, muçulmanos, cristãos ou judeus. Foi esse espírito que quis recuperar há um ano quando ajudou a fundar a Together - Vouch for Each Other (Juntos - Responder Uns pelos Outros). A ideia surgiu-lhe quando estava no Exército. Num país onde o serviço militar é obrigatório para homens e mulheres (três anos para os primeiros, dois para as segundas), este está reservado a judeus e drusos, com os árabes e os judeus ultraortodoxos a ficarem de fora. Mas Yoseph decidiu alistar-se, talvez influenciado pelo atentado suicida meses antes contra o restaurante Maxim, em Haifa, que matou muitos judeus, mas também árabes. "Na altura eu era um dos poucos árabes nas Forças Armadas israelitas, hoje o número aumentou 140%. Comandante da Brigada Golani, durante a Guerra do Líbano, em 2006, ficou gravemente ferido num ataque com mísseis. No rosto ainda exibe uma grande cicatriz, mas os médicos conseguiram recuperar o pé que o míssil lhe cortou. "Passei um ano no hospital, a recuperar." Tempo mais do que suficiente para pensar. Quando teve alta, foi para o Canadá, onde começou um negócio. Mas voltou e decidiu homenagear o comandante judeu que lhe disse ser preciso "responder uns pelos outros" dias antes de se lançar sobre uma granada para salvar a sua unidade.
Muito crítico dos políticos árabes israelitas, que acusa de não estarem preocupados com os problemas da comunidade e de só pensarem nos seus interesses, Yoseph admite que há extremistas de ambos os lados - judeus e árabes. Ele próprio tem sido ameaçado de morte mas está convencido de que "há lugar para os árabes em Israel". E se trabalha todos os dias para a cooperação, numa organização que conta com 135 ativistas e junta muçulmanos, drusos, cristãos e judeus, está convencido de que para o futuro a solução passa por dois Estados. "Um judeu com capital em Jerusalém e um palestiniano com capital em Ramallah."
Uma solução simplista, talvez. Além de todos os entraves, os palestinianos nunca aceitarão que Jerusalém não seja a sua capital. "Conheci todos os líderes palestinianos e nenhum tem coragem de dizer ao povo que chegou a hora de fazer concessões", explica Khaled Abu Toameh, sentado num hotel de Jerusalém. O jornalista e realizador, filho de um árabe israelita e de uma palestiniana, é correspondente do Jerusalem Post para os assuntos palestinianos. Muito duro com a Autoridade Palestiniana, Toameh acredita que com o discurso de incitação ao ódio o presidente Mahmoud Abbas "está a lançar os palestinianos para os braços do Hamas".
É o Hamas, precisamente, a maior ameaça que sentem os habitantes de Kfar Aza. O kibbutz fica a menos de 1 km da fronteira com a Faixa de Gaza - um território de 40 km por dez de largura onde se amontoam dois milhões de pessoas. Em 2014, a última guerra em Gaza fez 2200 mortos do lado palestiniano (1500 deles civis) e 71 do lado israelita (66 militares), segundo números da ONU. "A fronteira é ali, onde se vê o pó", aponta Batia Holin. Vestida de preto, cabelo curtinho e encaracolado, Batia conta como há 45 anos vive ali, em Kfar Aza, e, apontando para uma zona em que se veem várias casas em construção, explica que a filha também decidiu agora mudar-se para ali. "Quando Israel saiu de Gaza, em 2005, achámos que a calma ia voltar. Não havia razão para os palestinianos nos atacarem", explica.
Mas não foi isso que aconteceu. E nos últimos meses, além da ameaça dos rockets disparados pelos militantes do Hamas contra Israel, surgiu uma ameaça silenciosa: os balões e papagaios incendiários. Estes são lançados pelos militantes do grupo integrista e, quando explodem, largam um pedaço de madeira a arder que cai em solo israelita, começam um fogo. No kibbutz vivem hoje 800 pessoas, todas elas em alerta constante: têm apenas 15 segundos depois de o alarme soar para chegar a um abrigo. E são vários os que existem no kibbutz. Não só cada casa tem uma sala segura como espalhadas pela aldeia estão pequenas construções capazes de resistir aos rockets - e cobertas de pinturas de cores fortes, para lhes retirar o dramatismo.
"Gostamos muito de viver aqui. A vida é boa. Até o terror chegar", explica Batia. Ali vive-se sobretudo da agricultura, mas muitos trabalham na fábrica de microfones ou desloca-se todos os dias para Telavive. O momento mais dramático aconteceu há cinco anos, quando um míssil matou um habitante do kibbutz. "Hoje parece tudo muito calmo, mas de repente tudo muda", conta Batia. Seja quando veem milhares de palestinianos vir em direção à vedação, nas sextas-feiras em que os habitantes de Gaza protagonizam a chamada Marcha do Regresso, ou quando o alerta soa. Por isso há tanta gente com traumas ali. Como a mãe que ficou muito perturbada depois de pegar no filho mais novo quando ouviu o alerta, deixando o outro para trás. Na linha de apoio da NATAL, uma ONG que há 21 anos ajuda vítimas de traumas, a maioria das chamadas são de pais. Mas todos têm medo. "Em dias de muitos alertas temos medo até de tomar banho e de sermos apanhados nus na casa de banho", admite Batia.
A jornalista viajou a convite da Europe Israel Press Association