O novo mundo que virá
Nas muitas vezes em que estive em Lisboa e saía a pé pelas ruas, sempre me encantou ver os pares de homens idosos, sob grossos casacos e boinas, a caminhar de braços dados pela cidade. Não é um espetáculo comum aqui no Rio. Nosso clima não justifica casacos e boinas - mais comum serão bonés e bermudas -, e o hábito dos braços dados entre dois idosos, de que me lembro vagamente de ter visto na infância, parece ter sido abolido pelo brasileiro. Ao observar melhor, vejo que muitos desses senhores de braços dados em Lisboa devem ter mais ou menos a minha idade. E então me lembro de quando morava aí, em princípio dos anos 1970, e os senhores de hoje deviam estar, como eu na época, também na casa dos 20 anos. Pois assim como acontecia comigo, na época, talvez não ocorresse a eles dar o braço um ao outro ao caminhar. E, no entretanto, tantos anos depois, lá estão os dois juntos, como seus pais e avós devem ter feito muitas vezes.
Isto é apenas para dizer que o delicado ato de dois senhores de idade se ampararem mutuamente ao caminhar pela rua acaba de ser destruído pelas restrições impostas pelo coronavírus. Por muito tempo, ninguém será visto a caminhar de braços dados pela rua. Pior - ninguém será visto a caminhar pela rua. Pior ainda - ninguém será visto na rua. E ninguém será visto pessoalmente em lugar nenhum, porque não se pode visitar ou ser visitado por ninguém.
Se braços dados entre dois amigos se tornaram um gesto de risco, o que dizer de abraços apertados de boas-vindas ou de despedida em alguém que acaba de chegar ou de partir? Eles não acontecerão - porque todos estão obrigados a manter regulamentar distância entre si e ninguém mais está autorizado a sair de onde está e muito menos a chegar ou a partir. E o que dizer dos abraços lascivos entre duas pessoas que acabaram de se conhecer e se atrair? Também não acontecerão - porque ninguém conhecerá alguém novo por bom tempo, exceto talvez o encarregado das entregas da farmácia ou do mercado. E beijos na boca entre novos amantes apaixonados? Esqueça - os beijos só acontecerão entre bocas que vivem sob o mesmo teto e já se beijaram muito.
Em 2016, li num dos nossos jornais uma entrevista da governadora de Tóquio, Yuriko Koike, então em visita ao Rio. Ao andar pela cidade e observar os costumes locais, ela percebeu, deslumbrada, a escassez de gravatas entre os cariocas - raros os que, mesmo de casaco, traziam uma ao pescoço. E contou que estava tão de acordo com isso que, quando ministra do Meio Ambiente do governo japonês, aboliu oficialmente o uso de gravata nas repartições públicas. "O objetivo era economizar ar condicionado no verão de Tóquio, que pode chegar a 31º C, com humidade de 70%", ela disse. Yuriko contou que, no começo, os japoneses "ficaram assustados" - sentiam-se nus sem gravata no escritório -, mas em pouco tempo falaram-lhe da sua gratidão pela medida.
Outra ousadia de Yuriko foi combater a ideia de que "é bonito ficar muitas horas no escritório", como os japoneses foram ensinados a acreditar a partir da Segunda Guerra. "No Japão, a jornada "das nove às cinco" não termina às cinco da tarde, como no resto do mundo, mas às cinco da manhã seguinte", ela disse. E contou que começara uma campanha para que mais e mais pessoas dessem menos horas de expediente no escritório e substituíssem essas horas pelo trabalho em casa: "Com a internet e os celulares, aquilo se tornara perfeitamente possível e sem prejuízo do rendimento."
Bem, isso foi em 2016. Hoje, todos os funcionários que Yuriko queria mandar mais cedo para casa já estão em casa - em tempo integral. Por causa do coronavírus, as empresas praticamente deixaram de manter escritórios ativos em Tóquio. E, quando a pandemia passar, talvez os chefes e os funcionários dessas empresas se convençam de que não há motivo para se restabelecer o antigo regime - afinal, para quê voltar para o escritório se se pode continuar a fazer o serviço a partir de casa?
Muitos dirão que terá sido necessária uma crise para descobrirmos que os escritórios - pessoas trabalhando juntas num mesmo ambiente e exercendo funções especializadas em torno de um objetivo comum - se revelaram inúteis. De facto, os escritórios ainda não eram uma praxe antes de 1800, e o mundo funcionava relativamente bem. Até então, a maioria das funções se resolvia individualmente, em termos de ideias, análise de problemas e tomada de decisões. As pessoas só se reuniam esporadicamente e, mesmo assim, quando um problema era extremamente grave ou complexo.
Mas, então, em princípios do século XIX, os escritórios se institucionalizaram e se tornaram a praxe. E que grande evolução eles provocaram. As ideias pulularam, os problemas ganharam em análise e talvez as decisões se tenham tornado mais corretas, objetivas e práticas. Várias pessoas pensando juntas só podiam levar ao progresso, à eficiência, à produção de riqueza. O mundo melhorou com os escritórios. É verdade que eles geraram também a burocracia, a luta feroz pelos cargos e as promoções e a rivalidade, às vezes desleal, entre os colegas - a famosa rat race. Mas porque não pensar que eles geraram igualmente a aproximação entre esses colegas, paixões súbitas e o nascimento de relações amorosas, com tudo o que isso implica - prazer, êxtase e amor, assim como sofrimento, desespero e dor. Mas não terá sido essa fascinante fricção humana nos escritórios que nos fez calejados, experientes e adultos? E que, sem esses embates, continuaríamos tão infantilizados quanto ao nascer?
É o que veremos depois de ultrapassado o coronavírus: se o mundo a que voltaremos será o de antes, que nos moldou como somos, ou se será um novo mundo, habitado por pessoas que talvez não reconheçamos de saída e custaremos a perceber como são - nós mesmos.
Jornalista e escritor brasileiro, autor de Carnaval no Fogo - Crónica de Uma Cidade Excitante demais, sobre o Rio de Janeiro (Tinta-da-China).