Quem vai descascar o abacaxi depois de Bolsonaro?
Jair Bolsonaro já havia dito, ainda antes de eleito, que dificilmente concorreria a um segundo mandato, mas ontem, em conversa com jornalistas antes do embarque de Israel para o Brasil, após visita de Estado, chamou o cargo de presidente da República de "abacaxi", que significa "problema" no calão local, e declarou-se feliz por, pelo menos, "ser passageiro". A afirmação abriu oficialmente o período de especulações sobre a sua sucessão, com quatro anos de antecedência.
O desabafo surgiu depois de jornalistas o terem confrontado sobre se as suas intenções na visita a Jerusalém eram ajudar o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a reeleger-se. Bolsonaro negou. "Apenas tenho uma grande afinidade com ele, é paraquedista como eu, é capitão também, sabemos que Netanyahu é passageiro, daqui a pouco muda." E sem se deter: "Eu também sou passageiro no Brasil. Graças a Deus, né? Imagina ficar o tempo todo com esse abacaxi, com esse abacaxi, não, com essa quantidade de problemas nas costas? A gente vai tocando o barco..."
Por ser difícil de descascar, a expressão "descascar um abacaxi" ou, simplesmente, "abacaxi" significa um problema, uma chatice ou, usando calão português mais ou menos equivalente, um "pincel".
A oposição vem, na campanha e nos primeiros meses de governo, batendo na tecla de que Bolsonaro, do PSL, não tem estatura para ocupar o Palácio do Planalto: para Humberto Costa, líder parlamentar do PT no Senado, o presidente "é despreparado e desagregador", e para Paulo Pimenta, líder parlamentar do partido de Lula da Silva e Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, o seu caso justificaria mesmo a realização de um exame de sanidade mental.
Repórteres que acompanham Bolsonaro nas suas viagens internacionais também notam o desconforto e enfado do presidente no cumprimento de funções básicas - em Davos, alegando cansaço, cancelou a tradicional conferência de imprensa com os media estrangeiros que ficaram sentados em frente a um púlpito vazio. Mesmo o conservador O Estado de S. Paulo defendeu em editorial que Bolsonaro se revela "incapaz de colocar ordem na casa e concentrar energias naquilo que é realmente necessário para o país".
Mas desta vez não se tratou da habitual luta retórica entre governo e oposição, nem sequer de opinião expressa por uma imprensa supostamente hostil. Foi o próprio Jair Bolsonaro, ao dizer "imagina ficar o tempo todo com esse abacaxi", a abrir o flanco para a discussão sobre a sua sucessão.
Especulações não faltam. A começar pela atuação de Hamilton Mourão (PRTB), o general que ocupa a vice-presidência antes de 2022 e que herdaria a chefia do Estado em caso de qualquer impedimento do presidente.
Ao longo dos quase cem dias de governo, Mourão recebeu jornalistas tidos como personae non gratae pela família do presidente, encontrou-se com embaixadores europeus para melhorar a imagem do governo do Velho Continente, onde estava, na ocasião, Bolsonaro, e reuniu-se com representantes árabes para desmentir a intenção de mudar a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém.
Disse ainda que "a lei é para todos", a propósito do escândalo de corrupção em torno de Flávio Bolsonaro, primogénito do presidente, criticou a decisão controversa de se celebrar os 55 anos da ditadura militar e contrariou a fantasia presidencial de que o nazismo é de esquerda.
A avaliação de Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, é a mesma de todos os jornalistas que acompanham o dia-a-dia no Planalto: Mourão está a marcar território para 2022. Ou, dado o tal incómodo do presidente, para antes.
Partindo do princípio de que Bolsonaro cumpre o mandato, o campo governamental pode produzir outros candidatos, além de Mourão. Como Sergio Moro, o muito bem avaliado rosto da Operação Lava-Jato, que arriscou a carreira de juiz em ascensão pela de ministro da Justiça. E Paulo Guedes, o ministro da Economia cuja capacidade técnica é por todos elogiada.
Ainda à direita, João Doria, atual governador de São Paulo, que já nas eleições de outubro de 2018 esteve quase a ser indicado como candidato presidencial pelo PSDB de Fernando Henrique Cardoso, é um nome em ascensão. Doria tem-se revelado aliado de Bolsonaro, de quem poderia herdar os votos, sem porém apresentar a sua propensão para gafes, como a do célebre vídeo "golden shower", ou labirintos ideológicos, como o dos festejos da ditadura militar. Mais: é aliado, natural, dos mercados, na condição de empresário.
Por sua vez, Geraldo Alckmin, após o desaire expressivo de 2018, deve ficar fora de combate, mesmo sendo ainda o presidente do PSDB.
Não se pense que enquanto o governo se desgasta com a falta de resultados, e com as gafesdo seu presidente de extrema-direita, a esquerda se une em torno de um nome consensual e surfa na onda. Não: em vez disso, autoflagela-se.
"Gleisi Hoffmann é a chefe de uma organização criminosa e de uma quadrilha", disse Ciro Gomes, do PDT, sobre a líder do PT. Ela rebateu: "Ciro Gomes é um coronel oportunista ressentido e covarde. Quando a conjuntura exigia sua presença, fugiu para Paris. Está à espreita de crises para se apresentar como salvador da burguesia e do sistema financeiro. Por isso ataca Lula, PT, as nossas lideranças. Quer se apresentar como 'solução'."
O ambiente de confronto que levou a que em 2018, o PT, depois de saber da inelegibilidade de Lula, apresentasse candidato próprio, Fernando Haddad, em vez de apoiar Ciro, não melhorou. Pelo contrário.
Além de um candidato da área do PT - provavelmente Haddad, embora a militância petista continue a acreditar em Lula - e de Ciro, o PSOL, de extrema-esquerda, deve apresentar Marcelo Freixo, político do Rio de Janeiro que se elegeu deputado federal e tem como trunfo ser o padrinho de Marielle Franco, vereadora executada há pouco mais de um ano.
O presidente eleito em 2018 não passava de um deputado de baixo clero quatro anos antes, sinal de que a imprevisibilidade marca a política brasileira pós-Lava-Jato e prever 2022 é um exercício arriscado.
Por outro lado, ao longo da corrida presidencial anterior, nomes de empresários, juízes e apresentadores de TV chegaram a ser falados. Luciano Huck, apresentador da TV Globo, por estar envolvido em plataformas políticas, continua a ser o mais provável dos outsiders para 2022.
No entanto, em 2018, renunciou perto da hora-limite por sentir que a presidência lhe traria prejuízos profissionais, além de um intenso escrutínio da sua vida privada. Não o verbalizou, mas terá também olhado para o Planalto como um "abacaxi".