Entretanto, num país de faz-de-conta
1. Perto de uma centena de vítimas de tráfico de pessoas sinalizadas; 2 mil pedidos de asilo analisados; 200 concessões de estatuto de refugiado; 670 documentos de identidade e residência falsos apanhados; 70 mil pedidos de parecer de aquisição de nacionalidade processados; 130 mil autorizações de residência concedidas. Até entrar a pandemia, estes números compunham a fotografia do trabalho levado a cabo pelos inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que todos os anos lidavam pessoalmente com mais de 20 milhões de pessoas - alguns deles terroristas sinalizados, vigiados e travados.
O caso que faz manchete desta edição é um dos muitos em que o SEF foi determinante na proteção dos portugueses e na manutenção do país entre os mais seguros do mundo. Graças à especialização e experiência desta polícia, a trabalhar em redes europeias e internacionais, foi até agora possível detetar e travar ameaças terroristas, redes de tráfico e todo o tipo de criminosos. Muitos deles escondendo-se entre vítimas legítimas de regimes dos quais têm de fugir para sobreviver.
Distinguir uns de outros não é simples - ainda menos em momentos de crise humanitária, como o que trouxe esses iraquianos suspeitos de ligações ao Daesh ou o que resultou na entrada, em 2016, de dois marroquinos que acabaram condenados por terrorismo. Nesses casos - e em todos os mais que podemos dar-nos ao luxo de nem chegar a saber que aconteceram -, o SEF foi o primeiro a detetar, sinalizar, alertar.
A morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk é imperdoável e o caso não se pode repetir - os autores comprovados devem cumprir pena à altura do crime. Mas daí a desmantelar o SEF, extinguir um serviço altamente especializado e desprezar todo o conhecimento, meios e capacidade adquirida ao longo de anos, como o governo decidiu e o PR aceitou, vai um mundo de distância. E a decisão pode sair-nos bem cara.
Com uma nova crise de refugiados à porta, agora vítimas de um Afeganistão tomado por talibãs, resta saber que preço pagaremos por prescindir do SEF para fazer de conta que gerimos estes casos com mão de ferro - mesmo que se demore uma década para levar a julgamento governantes e banqueiros ou que se sacrifique funcionários pelas decisões dos líderes políticos.
2. Quase dois anos de vida em pandemia e a falta de critério ou lógica que norteia as restrições que nos impõem em Portugal ainda consegue surpreender-nos. Se já era inacreditável que pudéssemos andar a monte nos transportes públicos, sentar 30 miúdos na mesma sala de aula e ir passear ao Avante! sem soluços enquanto as salas de espetáculos mantinham limitada a lotação, ontem a DGS veio pôr legendas na decisão que o governo tomou quanto ao setor cultural. E com isso reduziu a capacidade dos recintos, que afinal ficam limitados a 75% dos lugares... sentados. DGS no comando!
Mais uma ideiazinha que nos chega sem que nos digam se há nela alguma base científica, claro. Porque o resultado dos eventos-piloto promovidos pelas associações, empresas e trabalhadores da cultura e eventos no princípio do ano - que se substituíram ao governo nessa tarefa, já que o Estado nunca avançou -, e que deveriam ajudar a tomar decisões informadas, continuam trancados na gaveta da ministra da Saúde. Sem qualquer perspetiva de verem a luz do dia e sem que haja muita gente ralada com isso. Para quê tomar medidas com base em factos, quando se pode fingir que se sabe tudo e fazer de conta que se está a abrir atividades - ou a ajudar empresas ou a contribuir para o crescimento - sem verdadeiramente o fazer?
Vacinas e testes servem de quê, afinal? Aparentemente, para muito pouco. Pelo menos num país em que se faz de conta que se governa para melhorar.