Viver com a criminalidade e a insegurança

Como travar a violência na Venezuela? Para uns com armas, para outros através da educação. "Mas como se pode ensinar com os estômagos vazios?"
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Não há dados oficiais sobre a criminalidade, violenta ou não, na Venezuela, mas não há dúvida de que a vida é cada vez mais difícil num país que é considerado um dos mais perigosos do mundo. Multiplicam-se os relatos de sequestros, de assaltos e até de homicídios. Crimes que, muitas vezes, ficam impunes. O sistema judicial não tem capacidade de resposta. As prisões estão sobrelotadas. As próprias forças de segurança são muitas vezes suspeitas. Mas há quem não baixe os braços e aposte em diferentes formas de combater esta realidade. Formas que vão desde dar o pão, para não roubarem, até à aposta demorada e paciente na educação.

São visíveis as consequências do colapso da economia com a hiperinflação, das carências alimentares, da falta de medicamentos e de cuidados de saúde, das falhas na distribuição de energia elétrica e de água potável, da ausência de manutenção dos equipamentos públicos, da emigração em massa, num país a implodir. Mas as consequências, numa análise mais aprofundada, são ainda piores.

Uma especialista em ciências da educação de uma universidade da capital venezuelana põe as questões nestes termos: "Mesmo que, por hipótese, tudo mudasse para melhor, com o melhor governo possível, com as melhores pessoas nos postos de decisão, economicamente a recuperação até nem seria muito longa, uns cinco anos e poderia inverter-se a tendência atual. O país tem muitas potencialidades e riquezas, quer no solo quer no subsolo. Já do ponto de vista social e educativo, pode estar em causa, pelo menos, uma geração." E a resposta só pode ser uma: "Educação, educação, educação, mas como se pode ensinar a estômagos vazios?"

Numa visita a um dos bairros de lata de Caracas, onde vivem milhares de pessoas em condições sub-humanas, uma voluntária envolvida numa missão educativa, que prefere manter-se no anonimato, fala do muitíssimo que há para fazer, a vários níveis. O mais urgente é, de facto, o combate à fome, especialmente nos mais novos. "São já visíveis as consequências no desenvolvimento físico e mental. Muitas crianças ficam a dormir até tarde, pois pode significar menos uma refeição por dia. Aumenta, assim, o absentismo escolar." Muitas delas ficam, por vezes durante a noite, nas grandes filas dos supermercados, a aguardar vez para a compra de alimentos a custos controlados. Bens que podem vender por um valor várias vezes superior. Até o próprio lugar na fila pode significar um negócio.

Para os jovens, como não há empregos, especialmente para os menos qualificados, a delinquência, integrados ou não nos bandos organizados, a prostituição ou a emigração são os caminhos mais prováveis. "Com o núcleo familiar desfeito, a promiscuidade e as carências a vários níveis levam as jovens a engravidar cedo", diz a voluntária. Têm uma pequena ajuda estatal que, garante, "tem estimulado a gravidez na adolescência". Como a insegurança é o pão nosso de cada dia, algumas jovens envolvem-se emocionalmente com os líderes dos bandos, "dá estatuto social e prestígio ser a protegida de alguém que é olhado com medo". O abandono de filhos menores, que ficam sob os cuidados de familiares ou até de vizinhos, é também frequente. E repete-se o ciclo. Como nos dá a entender a voluntária que estava com um grupo de crianças, o futuro dessas crianças é fácil de imaginar.

OLP, as máscaras da morte

Um dos maiores traumas que ainda permanecem na memória coletiva são as operações de tropas especiais que entram nos bairros mais pobres e procedem às chamadas "limpezas". Começaram em junho de 2015 e durante ano e meio estiveram particularmente ativas. O plano foi apresentado pelo próprio presidente venezuelano, Nicolás Maduro.

A OLP, a Operação de Libertação do Povo, tinha por objetivo combater a delinquência e a insegurança. Na prática, levou a morte a vários locais da Venezuela, não só nos cerros da capital, mas noutras cidades. Vários agentes bem equipados, fortemente armados e com máscaras negras (foram apresentadas por Maduro num programa televisivo, em cadeia nacional), entram pelos bairros à procura de alegados delinquentes. Somaram-se algumas centenas de mortes, nas respostas das forças especiais aos gangues organizados.

As críticas foram tantas e de vários setores, que o presidente foi obrigado a mudar o nome e introduziu o "H", Organização Humanista de Libertação do Povo. No percurso por um dos bairros de lata da capital, uma das religiosas que lá trabalham e espalham a fé mostra uma das barracas onde os agentes entraram, perguntaram se era determinada pessoa e dispararam a matar. "Desfiguraram o rosto com um tiro." Sem mais. A religiosa não esconde a indignação ao dizer que, "apesar das escolhas erradas feitas por esses jovens, ninguém tem o direito de tirar a vida a quem quer que seja". Há suspeitas de ajuste de contas, vinganças pessoais.

Vários organismos, nacionais e internacionais, falam de atentados aos direitos humanos em nome do combate à criminalidade. Há muitos testemunhos que dão conta da extrema violência das "limpezas" feitas. Estas suspeitas de crimes nunca foram investigadas.

Texto originalmente publicado no Diário de Notícias da Madeira

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