Na Conserveira de Lisboa há tempo para conversar. Com muita lata à mistura
Tudo começa com a colocação da lata sobre o papel, o mais centrada possível. Após as duas primeiras dobras, verifica-se se está tudo bem alinhado. Depois o papel volta a dobrar por mais oito vezes (quatro por cada canto) e aplica-se fita-cola, "muito fininha", para selar o trabalho. Todo o processo de empapelamento das latas da Conserveira de Lisboa continua a ser feito à mão, na loja, em frente aos clientes. Esse é apenas um dos aspetos que nos fazem recuar no tempo assim que entramos nesta casa de comércio histórica e familiar de Lisboa, que neste ano assinala nove décadas de portas abertas ao público.
Mas há mais. Por exemplo, um simples banco corrido de madeira. "Quando este espaço começou a funcionar (em 1930, então com o nome de Mercearia do Minho), a Baixa de Lisboa tinha uma componente residencial muito forte e a conserveira funcionava como uma mercearia de bairro, com todas as características que isso tinha. As pessoas vinham cá fazer as suas compras, mas também ficavam por aqui mais algum tempo, para dois dedos de conversa com quem as atendia ou com outros clientes. E o banco servia esse propósito. Por isso sempre fizemos questão de o manter por cá e ainda hoje temos clientes que chegam e se sentam para conversar connosco", conta ao DN Tiago Ferreira, 42 anos, neto de Fernando da Silva Ferreira, o qual começou a trabalhar na loja como empregado tendo mais tarde adquirido um terço da sociedade.
O negócio foi ficando nas mãos da família até hoje. A mãe de Tiago, Regina Ferreira, 72 anos, é presença assídua na loja e a irmã, Maria Ferreira, 37 anos, também participa na gestão.
A Conserveira de Lisboa está situada na Baixa da cidade, na Rua dos Bacalhoeiros (n.º 34), numa zona onde já se fazia conserva de peixe desde o tempo da ocupação romana, existindo mesmo na loja um antigo tanque de salga, hoje tapado para efeitos de preservação, que fazia parte do complexo conserveiro de Olisipo (o nome romano da capital portuguesa) que se estendia desde a Casa dos Bicos até à Rua Augusta.
Com 90 anos de vida, a Conserveira tem ainda muito da sua traça original - o mesmo balcão, o mesmo expositor, a mesma fachada que separa a área de atendimento ao público de um pequeno escritório e espaço de armazenamento. Pendurados nas paredes estão também quatro velhos letreiros publicitários de chapa, com mensagens como "As conservas de peixe portuguesas são as melhores do mundo" ou "No campo, na praia, em tôda a parte, deve ter sempre conservas de peixe".
Mais recente é o chão, de calçada portuguesa, e um pequeno expositor (a que Tiago chama de minimuseu) onde são exibidos alguns objetos que fazem parte da história da loja, como velhos abre-latas, uma antiga máquina de escrever, diversas latas litografadas e os registos de propriedade das três marcas que a conserveira de Lisboa vende ao público: a Tricana (para peixes maiores, mais maturados e filetes inteiros), a Minor (peixes mais pequenos e pastas) e a Prata do Mar (peixes de tamanho médio).
Os três nomes foram registados na década de 40 do século passado, assim como uma outra marca, Piruças, que apresentava a imagem de uma menina a pescar e que, entretanto, acabou por ser sacrificada "porque foi perdendo força do ponto de vista estético". Tiago Ferreira faz questão de salientar que "nada é mais importante do que a qualidade do produto que está à venda", mas admite que a parte estética (o grafismo do papel de embrulho) também deve ser valorizada porque cativa o cliente e reforça a identidade da marca.
A comprová-lo está uma má experiência vivida nos anos 80 do século passado. "Tivemos uma fase em que decidimos modernizar e os desenhos tornaram-se muito mais estilizados, as letras mais retas e menos orgânicas. Mas correu pessimamente. Embora as latas e a conserva de peixe fossem exatamente as mesmas, com a mesma qualidade e receita, a verdade é que as pessoas compravam a primeira vez mas quando voltavam diziam: 'Desculpe lá, mas isto não é a mesma coisa.' Diziam-nos que queriam comprar as latas que tinham o desenho e a cor que já conheciam. Isso aconteceu com vários clientes e rapidamente voltámos ao design anterior. Havia ali um fator psicológico fortíssimo porque as pessoas simplesmente não acreditavam que se tratava do mesmo produto."
Foi nesse sentido que há 10 anos optaram por uma nova revisão de design para "dar coerência à identidade das três marcas", que hoje mantêm uma paleta de cores mais uniforme bem como os desenhos originais - a Tricana mostra uma varina, a Minor o rosto de um gato e a Prata do Mar um pequeno barco à vela no mar - com pequenas diferenças de padrões. A imagem cuidada, com um apelo vintage, capta a atenção e há até quem escolha o que comprar em função do aspeto gráfico. "Acontece principalmente com clientes estrangeiros. Por vezes estamos, por exemplo, a sugerir que levem uma conserva de carapau e eles, como não conhecem bem o peixe, acabam por fazer a sua escolha em função das cores de que mais gostam", admite Tiago.
Mas é ao peixe e à sua qualidade que se dedica mais atenção. A loja trabalha com vários produtores, espalhados pelo país, que fazem a conserva seguindo as receitas da Conserveira de Lisboa. O atum, por exemplo, vem quase todo dos Açores. Um dos produtores mais recentes está na ilha do Pico e distingue-se por ter criado conservas com paladares menos comuns na mesa dos portugueses, como as de atum com gengibre, perrexil-do-mar (também conhecido por funcho marítimo) ou limequat (da família dos citrinos).
Tiago Ferreira tem todo o processo na ponta da língua, que começa na salga e pré-cozedura a vapor (que elimina muita da gordura do peixe e é fundamental para o paladar da conserva), passa pelo enlatamento e a esterilização e termina com o empapelamento na loja. "Todas as pessoas que vêm trabalhar connosco têm de aprender a fazer o empapelamento logo no início. Faz parte da tradição, é como uma praxe", conta Tiago, que o aprendeu a fazer ainda criança.
A oferta da Conserveira, entre diferentes peixes e tamanhos de lata, chega aos 90 artigos. Em valor, o atum em azeite é aquele que mais rende, e com o boom do turismo a sardinha em azeite (tão associada à cidade de Lisboa) começou a competir no volume de vendas.
A variedade de peixe é extensa e vai desde os clássicos atum e sardinha a outros menos habituais como lampreia, lúcio ou achigã. Os preços vão dos dois euros (sobretudo latas de cavala) aos 17,79 euros (lampreia fumada recheada). Há muito por onde escolher e isso é visto como um trunfo: "O que nos descreve melhor é termos aqui muitas conservas que não se encontram com facilidade, como por exemplo um bacalhau confitado com figo e nozes ou um espadarte com grão e hortelã-pimenta. É isso também que a dada altura traz os clientes a esta casa."
E qual é o retrato do cliente tipo da Conserveira? "É sobretudo alguém que gosta de coisas boas, que vive em Lisboa e nos visita com frequência. O cliente que está em Lisboa a fazer turismo também ganhou peso nos últimos anos. Mas a forma como gerimos o nosso negócio não é virada para o turista, até porque acredito que se o fizéssemos íamos perder muita da nossa identidade, da nossa autenticidade, que é precisamente o que muitos turistas procuram quando nos visitam. Não vêm só realizar uma compra, vêm também viver uma experiência."
Mas o turismo foi, como se sabe, um dos setores mais afetados com a pandemia de covid-19. Num ápice desapareceu uma grande fatia dos clientes da Conserveira de Lisboa e o quadro ficou ainda mais complicado porque "com o teletrabalho, algumas das pessoas que trabalhavam aqui perto, e que passavam para fazer uma compra, deixaram de vir". O volume de encomendas até aumentou e agora, mais do que nunca, está a ser estudada a hipótese de a Conserveira passar a contar com uma loja online, apesar de Tiago Ferreira notar que "o consumo médio diminuiu, devido a alguma quebra no poder de compra".
Mas nem tudo foram más notícias. "O aspeto positivo vem no seguimento daquilo que foi mau. Hoje conseguimos prestar um serviço muito melhor ao cliente, diferente daquele que era possível quando a casa estava sempre cheia. Agora consigo estar a explicar tintim por tintim, com tranquilidade, todo o processo de conserva, sugerir pratos para fazer em casa e outras coisas mais. Permitiu-nos voltar um pouco ao espírito de mercearia de bairro que faz parte da nossa génese", salienta ao DN.
Tiago Ferreira dá também conta de outra preocupação da casa: a preservação das espécies marinhas. Uma das decisões que tomaram, face à diminuição do stock de sardinha no mar, foi deixar de comercializar petingas ou ovas de sardinha. "À nossa escala, é um contributo que damos para para não travar a reprodução da espécie." Outra iniciativa foi a promoção, junto dos clientes, da compra de cavala, um peixe mais abundante e menos tradicional em conserva: "Os clientes não saíam daqui sem ouvir a pergunta: 'Não quer experimentar esta cavalinha? É muito boa, barata e vai ver que não se arrepende.' Hoje já vemos os frutos disso, com cada vez mais gente a preferir a cavala, principalmente jovens", frisa ao DN.
A Conserveira de Lisboa garante que outro dos princípios a que se mantém fiel é "a luta por manter o negócio na família". Mas no que é que consiste essa luta?
E por que razão é assim tão importante? "Tudo se resume a uma questão de valores, que fazem parte da nossa família: a honestidade comercial a todos os níveis e o garantir da qualidade de tudo o que fazemos, do produto ao serviço. O facto de nos agarrarmos a esses valores tem consequências. Nunca iremos ter uma dimensão enorme, porque não é esse o caminho que queremos seguir. Queremos que o cliente confie em nós e que, se algo estiver mal, entre na loja e venha pedir-nos satisfações. É por esse tipo de relação que lutamos", explica Tiago.
"Há um certo orgulho em ter mantido esta casa viva até agora. Já temos 90 anos e queremos muito chegar aos 100. Temos uma loja bonita, amizades de décadas, que nasceram aqui na loja, com clientes portugueses e estrangeiros. Que nos conhecem, que sabem quem somos e nos acompanham. Isso faz-nos lutar. Essa força, essa persistência, está sempre presente", completa Regina Ferreira.