Mais alguma vez nos vamos apaixonar?

A partir de certa idade, a ideia é de que ou já se "tem alguém" ou nunca mais. Que a paixão e o amor - o amor fulgurante dos romances, que reduz tudo a uma pessoa, ao que sentimos por ela e ela por nós - ficaram para trás. Há um momento em que se desiste? Ou nunca? Cinco mulheres e dois homens com mais de 60 respondem.
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Não é costume explicar estas coisas, mas o tema merece: esta reportagem nasceu de uma constelação de impulsos. Por exemplo da entrevista que fiz há mais de vinte anos a um amigo de Jorge de Sena, Filipe Palet, a inspiração da personagem Puigmal, o ocultista e separatista catalão de Sinais de Fogo (Palet era de origem catalã e o pai espírita). Então com 79 anos, narrou-me num café da Avenida de Berna as suas memórias do escritor e da juventude. A dada altura, levantou o olhar em prece: "Não sei se isso é normal, mas lembro-me de andar na rua com ansiedade a ver as raparigas à janela, nos passeios, à procura do amor."

Soube então que a nostalgia do desejo de amar podia permanecer intacta e comover assim, ainda, um homem daquela idade. Estava a entrevistá-lo para uma biografia do escritor, mas hesitei naquele momento em mudar a agulha e pedir-lhe que me dissesse dali, daquele lugar, o que via, o que se vê, se tudo é já distância e memória ou resta a vontade de que haja ainda tempo, se o corpo ainda se acende, se se sonha uma nova paixão. Ou se, como no poema de Sena Frígido vento, é de "saudades de ser jovem" que se trata - "quando como ele / passava gélido / queimando as faces / crestando as mãos / deixando em corpos / algo de mim / sem que ficasse / nem lá nem cá / menos de mim".

Saudades da beleza imperial do corpo e da ardência do desejo, da capacidade de crer que haverá sempre mais alguém, mais encantamentos. Que por mais que se desperdice o tacho não tem fundo, que por mais que doa haverá consolo, pelo de outro cão. Mas, como adverte o pai no diálogo com o filho adolescente que sofre a perda do primeiro amor em Call me by Your Name, filme de 2017, "os nossos corações e os nossos corpos são-nos dados só uma vez. E antes que dês conta disso, o teu coração está gasto. Quanto ao teu corpo, chega um dia em que ninguém olha para ele, quanto mais chegar-lhe perto".

Destaquedestaque"Os nossos corações e os nossos corpos são-nos dados só uma vez. E antes que dês conta disso, o teu coração está gasto. Quanto ao teu corpo, chega um dia em que ninguém olha para ele, quanto mais chegar-lhe perto".

Coração e corpo imprestáveis? Medo? Cansaço? Descrença? Deliberação de ataraxia? Lealdade aos amores perdidos? Será isso que leva na série Yellowstone o sexagenário viúvo interpretado por Kevin Costner a responder "Penso que não" à amiga com quem acabou de ter sexo e que lhe perguntou "achas que mais alguma vez nos vamos apaixonar"?

Foi esta pergunta, a sua resposta e o que a amante diz a seguir - "E no entanto era a única coisa que realmente importava" - a dar o empurrão final para esta reportagem. Ouvir quem, para lá dos 60 (era preciso definir uma fronteira, defini essa), aceitasse responder-lhe. Naturalmente, procurei pessoas que não partilhassem a vida com alguém - não era mais um texto sobre os casais que duram décadas e o "milagre" dos amores duradouros (ou que se apresentam como tal), mas sobre a crueldade do tempo e o seu desgaste, sobre as dúvidas e o desalento, sobre o olhar para trás e as contas que se fazem. Sobre a perda e a sabedoria e o estoicismo necessário à sobrevivência - e talvez sobre a redenção.

Todos os entrevistados falaram na condição de anonimato, para poderem falar à vontade. Por precaução, não dou deles mais informação biográfica que a do seu percurso amoroso - melhor isso que inventar para despistar. Espero que o texto faça um pouco de justiça à confiança que depositaram em mim.

"Há muitas coisas boas na vida, mas é difícil haver outra tão boa como o high [êxtase,'moca'] da paixão."

Ainda assim há muito que esta mulher de 68 anos não se habilita. "A última vez que me interessei por alguém essa pessoa trabalhava comigo - era chefe dele - e disse que não queria ter relações com alguém com quem trabalhasse. E a penúltima foi muito traumatizante, porque era um grande amor, uma grande paixão, e acabou de uma forma abrupta, há 20 anos - a outra pessoa não quis mais continuar. Há relações que começam com paixão, continuam com amor profundo e depois acabam, passando pelo processo todo. Esta não teve essas fases todas e sofri horrores. Hoje até acho um bocado de graça, penso 'que disparate'. É como se esperássemos que a nossa salvação estivesse na outra pessoa."

E não está? Não é isso o amor, reduzir todo o sentido do mundo, do tempo, da respiração, a alguém - e se esse alguém falta, ver todas as ruas vazias? "Un seul être vous manque, et tout est dépeuplé [um único ser vos falta, e tudo fica deserto]", escreveu Lamartine. A minha interlocutora - chamo-lhe Teresa - sorri. "Tem que ver com a reprodução, todos os químicos aos saltos. É como uma droga, dizia esse meu parceiro. Cada vez que recebíamos um mail um do outro era um high [um pico de prazer]. E quando acaba tem-se a síndrome de privação."

O outro como vício programado, então. "Não sou religiosa mas a Igreja Católica diz que o sentido da vida é a reprodução. E o amor e a paixão são instrumentos da transmissão da carga genética. E há também uma construção social fortíssima, claro." Sim: a ideia de que existe uma pessoa, "a pessoa" certa para cada um de nós, e que não a encontrarmos ou não sermos capazes de a conquistar ou de a conservar (e continuar a amá-la) é falhar a vida. Ainda espera? "Tive muitos namorados, muitas relações, mas tive só duas ou três paixões. E todas morreram. E para uma mulher da minha geração as oportunidades escasseiam. Há menos pessoas interessantes e as que há estão em relações e não querem pô-las em perigo. A maior parte das pessoas vivem juntas e gostam de viver juntas. Mesmo que já não se amem."

A vontade de encontrar alguém pode no entanto durar até ao fim. Dá o exemplo de duas tias que quando foram para o lar, por volta dos 80, arranjaram namorados. Remata em gargalhada: "Vou ficar à espera disso, do lar."

Aqui não, não se dá hipótese. "Não quero sentir as borboletas. Não sinto isso como uma perda - se me perguntasses há dez anos poderia sentir como uma perda, mas não fiz nada: fiquei à espera de que caísse a nêspera da nespereira. Ou nem sequer isso - não olhei sequer para a nespereira. Houve um momento em que decidi não ter disponibilidade - fui deixando, fui sentindo que estava a começar a deixar de ter. Aquela coisa de ver um tipo giro e cruzares o olhar: não cruzo."

Tem 65 anos, mulher. Vive só há 13, desde que o namorado morreu, tinha ela 52. "Tive a minha dose de paixões - casei-me quatro vezes. Casei-me porque achava que estava apaixonada por aquelas pessoas, mas retrospetivamente tenho dúvidas em dois casos; com uma das pessoas casei-me por achar que era a pessoa que achava que era a melhor para mim. E apaixonei-me pela última vez há 20 anos. Se me perguntares se seria capaz de me apaixonar de novo, acho que não. Porque as pessoas me aborrecem. Não me apetece tomar o pequeno-almoço com ninguém, o passa-me a manteiga. Quero estar sozinha, não quero partilhar a minha vida."

Apaixonares-te não é necessariamente viver com alguém, não é? "Não. Também há o ponto de vista racional - de não querer. Até porque há uma coisa que é a degradação física, o pudor de nos despirmos em frente a outra pessoa. Somos flácidas, somos lentas, fazemos ruídos estranhos." Maria - fica Maria - ri.

Destaquedestaque"Há uma coisa que é a degradação física, o pudor de nos despirmos em frente a outra pessoa. Somos flácidas, somos lentas, fazemos ruídos estranhos."

Este homem, menos cinco anos, confirma: "O corpo é cruel. Estamos aqui a ocupar uma coisa durante um tempo muito estendido e há uma dissonância pela qual toda a gente passa, que é a que existe entre a imagem que temos de nós, que fixámos ali pelos 30 e tal, e o que os outros veem. Há uma altura em que achas que és a mesma pessoa mas a tua imagem no espelho que é o olhar dos outros não coincide. E é preciso fazer um esforço, quando te dás conta disso, para não ver só perda, perda, perda."

Não haja esse esforço e o resultado é "achar impossível que alguém se sinta atraído por mim. Se estou na esplanada e há um tipo a olhar tenho de me obrigar a pensar que pode estar interessado. Além de que há outra coisa perversa: apercebi-me de que me defendo do que acho que é a minha não atratividade achando que os outros não são atraentes. É um payback, uma retaliação. Agora faço um exercício para contrariar isso, que é o de a caminho do trabalho me forçar a achar dois homens atraentes. E percebi que funciona."

O interesse erótico ou sexual - que outra coisa é achar alguém "atraente" ou "interessante"? - pode ser então uma coisa que se liga e desliga, de acordo com a imagem que temos de nós próprios: o desejo precisa de se sentir merecido. "Sim. Até porque não queremos passar vergonhas. A idade é uma coisa terrível, e nos homens gays é muito má."

Destaquedestaque"Apercebi-me de que me defendo do que acho que é a minha não atratividade achando que os outros não são atraentes. É um payback, uma retaliação."

E depois, prossegue, "há outras dimensões. Sinto uma perda de libido nos últimos anos. É uma coisa que só se percebe ao fim de um certo tempo - estou muito mais calmo e muito menos testosterónico. Talvez se víssemos o sexo de outra maneira - se não o olharmos com esta pressão gigantesca mas como se fosse ir ao cinema - não sofrêssemos tanto. E sim, acho que nunca mais me vou apaixonar. Mas vivo pacífico com isso. Tenho aprendido a estar sozinho sem que isso seja um problema. O que contrasta com o discurso à minha volta - que é de gente com muita bagagem, muito ferida. Há gente que está com tipos horríveis só para estar com alguém. Também tenho bagagem, mas não sinto aquilo que algumas pessoas dizem - que chegam a casa e é horrível porque não há ninguém"

Se deixa de haver esse impulso de procura - o olhar de fé (e a fé no olhar) que Filipe Palet descreve no início deste texto - as possibilidades estreitam-se, diz este homem, ainda o mesmo, a quem dou o nome de Pedro. "Construímos biografias sobre nós próprios, que valem o que valem mas acho que são honestas - porque não existimos fora de nós nem somos cientistas de nós próprios. E na minha bio emocional nos últimos dez anos não tive nenhuma paixão. Tive sexo ocasional, tive enfatuações - que é uma palavra que vem do inglês infatuation [neste caso podendo traduzir-se por arroubo, encantamento], que não existe em português mas faz falta, porque não foram paixões. A paixão é uma coisa que ocupa muito espaço e tem um potencial de sofrimento imenso. Não quero passar por isso outra vez."

Há dez anos, precisamente, acabou a segunda relação importante da sua vida. "Olho para trás e tive duas grandes paixões, duas grandes relações. Apaixonei-me por uma pessoa com quem vivi 14 anos, de 1986 até 2000. Não era uma relação muito fusional - foi tudo muito tranquilo, éramos pessoas independentes, pude fazer as minhas coisas, ter os meus amigos, fazer o meu trabalho. Depois tive a segunda, logo a seguir, durante dez anos, muito apaixonada e fusional, muito mais pública e familiar - mais forte e cansativa. E que quando acabou me deixou num longo período de depressão. Olho para aquilo e penso: 'não me apetece mais'. E reconheço um pouco de cinismo em relação ao amor." Como assim? "O de achar que há uma narrativa cultural que fala do amor e da paixão como essenciais na vida. E acho que não são essenciais, são a cereja no bolo. Mas o bolo está por baixo."

Pode haver quem leve mais longe a descrença - e se encontre aos 62 sem sequer saber se teve paixão por mais alguém que o primeiro namorado ou se sequer isso é mais do que ilusão. "A primeira vez que me apaixonei foi no liceu, aos 14, 15. Até doía. Se calhar foi a primeira e a última, porque nunca mais foi igual. Era o amor puro, uma coisa superintensa, a primeira vez que passei por aquele processo. Acho que a pureza acontece uma vez."

Destaquedestaque"A primeira vez que me apaixonei foi no liceu. Até doía. Se calhar foi a primeira e a última, porque nunca mais foi igual. Acho que a pureza acontece uma vez."

A voz é de uma mulher. "Mas chegou ao verão e ele quis acabar e fiquei totalmente perdida. Estava tão desamparada que, sendo a única virgem do grupo, resolvi despachar serviço. Apareceu um rapaz de fora que achei giro e zás. Lembro-me do desinteresse: ah, o sexo é isto? E sabes o que aconteceu? Engravidei. A minha vida sexual começou logo em bom." Abortou, como se abortava em Portugal até 2007: num apartamento qualquer, com uma raspagem a frio que ainda hoje a estremece, a ameaça de morte e de prisão a reforçar o trauma.

Acabaria por voltar para a sua paixão. Mas sente que "a minha vida amorosa acabou ali. Porque aquilo que tinha idealizado como uma construção conjunta foi mutilado à partida". Explica: "Nasci pouco antes dos anos 1960. Sou do tempo do enxoval, da mulher ideal, dos livros da Laura Santos [autora de Noiva, Esposa e Mãe, Escola de Noivas e A Mulher na Sala e na Cozinha]. Eu queria ser a mulher ideal, imaginava uma casa com uma mesa grande, montes de filhos, os cortinados a esvoaçar. Tinha esse sonho. Nas fantasias que tinha com alguém imaginava sempre aquela mesa da família, construir. Mas como não tive uma coisa normal como supostamente achava que iria ter, a partir daí nunca mais atinei."

Casar-se-ia aos 23, teria um filho. "Não me lembro se me apaixonei pelo pai. Gostava imenso dele mas era o que se chama uma pessoa tóxica. Era inseguro e não acreditava em mim. Uma coisa muito maternal." Como achas que seria se tivesses ficado com aquela pessoa que crês ter amado? "Ainda penso nisso porque creio que determinou a minha vida. De tempos a tempos fantasiei com ele, é uma espécie de porto de abrigo a que volto sempre na minha cabeça. Mas se tivéssemos ficado juntos se calhar a dada altura rebentava." Por alguma razão as histórias da infância acabavam quando as pessoas se juntavam e viviam felizes para sempre. "Feliz para sempre": é uma espécie de maldição, não é? "Sim, 'viveu feliz sempre' Tinham de morrer a seguir, até porque a felicidade é cíclica. O que é a felicidade para já?"

E o amor? "É o que fica depois da paixão, o que vem a seguir. Se calhar é uma coisa ao contrário, se calhar o amor é teres o amor de alguém. O problema é a sintonia. Que acontece em dados momentos - porque as pessoas estão em ritmos diferentes, estão em momentos diferentes. Aquilo que me ocorre é : 'é tudo uma ilusão'. Vivemos de ilusões. E cada um tem as suas. Que podem a dado momento coincidir a nível de atração sexual, de atração física, a nível intelectual e a nível de interesses." Reflete: "O que tive praticamente durante a vida toda foi viver numa espécie de irrealidade, num mundo paralelo em que se alguém me atraía por qualquer razão, se achava graça a alguma coisa - a cena física sempre foi predominante -, eu era como se fosse uma aranha a construir uma teia. Cheguei a levar quatro anos a esperar pacientemente até levar aquela pessoa para a cama. Até conseguir o que queria. Claro que nesse dia acabava tudo. O prazer do jogo, da sedução, que foi o que me alimentou, tornou-se a minha especialidade. Especializei-me em filmes."

Agora, acha, os filmes acabaram. "Já ninguém se interessa por mim e eu própria já não tenho o mesmo interesse pelas pessoas. A partir do momento em que ficas invisível, e a partir dos 60 ficas invisível, entras noutro planeta, outro registo. Depois é uma questão de aprenderes com isso e contigo, sem interferências, sem as tentações."

"Chegas a uma altura da vida e desistes de certas coisas." A sentença é de uma mulher de 81 anos. "Quando enviuvei - em 2002 - tinha 64 ou 65 anos. E não me passou pela cabeça apaixonar-me outra vez. Achei que ia começar uma nova vida. Parece-me que é cultural as mulheres virarem-se muito para os netos e os filhos; já os homens têm maior dificuldade em viver sozinhos. Nunca me sentei para decidir nada, mas se calhar a palavra indisponibilidade é capaz de ser a adequada. Não me fazia falta de certa forma; sou muito racional. Não sou romântica - não é necessariamente uma qualidade. E não tenho nostalgia da paixão. Era chato não ter passado por lá, mas é uma coisa que faz sofrer."

E sofrer por paixão Joana sofreu. "A primeira vez que me apaixonei foi por um amigo casado. Fazíamos parte do mesmo grupo de católicos progressistas - fui católica até 1968 -, que eram paradoxalmente bastante libertários; como não se podiam divorciar, acabavam por se separar e viver com outras pessoas do grupo, o que não era nada comum, naquela altura. Foi uma paixão a sério, que durou três anos, e acabou porque ele não se separava."

O seguinte subiu ao top das impossibilidades: "Foi em plenos anos 1960, e por um tipo que era homossexual e tentou não ser." A distância faz dela cientista: "Foi uma experiência muito curiosa, talvez o caso mais especial que tive. Sofri bastante com essa impossibilidade - e ele tinha um desgosto enorme por não conseguir deixar de ser homossexual."

Joana tinha dito no princípio da conversa não se lembrar de nada doido ou improvável que tenha feito por amor. Mas agora conta que disse àquele homem, que tinha também uma relação com um rapaz, "vive com ele se quiseres e ficas com os dois. Que estava disposta a partilhá-lo". Estava tão apaixonada, conclui, "que fiz essa loucura. Mas ele não foi capaz".

Pelo marido, com quem viveu 28 anos e teve um filho, teve sentimentos, mas "foi diferente, porque aconteceu na altura do 25 de Abril. Era a grande paixão coletiva". Do seu tranquilo posto de observação, Joana não sabe porém dizer o que é o amor. "É muito difícil. Por exemplo o amor à primeira vista é bastante inexplicável. Aconteceu-me - às vezes nem se concretiza nada. Pensas: este podia ser. E acho que uma das componentes do amor, do amor amor, é o respeito. É o fator que permite uma relação perdurar de uma maneira sã."

Já Maria - que conhecemos lá para cima no texto - crê que o amor "é a ausência de desejo. A minha questão quando se fala de amor ou paixão é não sabermos distinguir quando falamos dessas coisas. Para mim o desejo está na paixão, e o amor tem sempre de resultar da paixão. Levei a vida a perceber essa coisa que vinha já de Platão e que só a partir do século XX desaparece - que não há um lado animal e racional, e que as coisas estão misturadas em nós. Que a pessoa amada é real, a pessoa que amamos por coisas tão pequeninas como um cheiro ou uma forma de andar. O que é sentir esse amor - não sei responder muito bem, não. É como se os corpos se equivalessem. É um amor de pequeninas coisas quotidianas, de vontade de anichar, de andar de mão dada, de dormir abraçada".

Ou uma atitude. É o que diz, 70 anos feitos durante o confinamento, Helena. "Pensando na definição de amor que me pedes, creio que é isso: uma atitude. Sem a 'atitude amor' não se dará a possibilidade do encontro amoroso. Claro que ter essa atitude não significa que o encontro se produza, e na maioria das vezes não se produz, mas caso ocorra será maravilhoso. E acho que vale a pena ter a 'atitude amor', é mais bonito viver com ela, porém sem ansiedade nem frustração. Que não haja o tal encontro sentimental - erótico ou não - não nos priva de gerar amor, não nos seca."

Destaquedestaque"Aos 70 anos não se está morta ou deslegitimada para o amor, mas as circunstâncias alinham-se uma vez na vida, e nem sequer para todas as pessoas, de modo que acertar duas vezes no alvo numa única vida é muito difícil e seria até injusto."

E tens essa atitude? "Aos 70 anos não se está morta ou deslegitimada para o amor, mas o passado de cada pessoa manda muito, pode condicionar e condiciona. Supondo que quem não tenha encontrado relações satisfatórias não queira, na idade, sequer falar desse assunto. Mas quem tenha vivido uma história forte e magnífica também tem uma bitola muito elevada, não creio que se contente com sucedâneos ou remédios mais ou menos pontuais. Obviamente ter vivido não significa negar-se a vida, mas talvez leve a viver de outra maneira, a não tratar de repetir experiências, ou seja, a não 'procurar', e isso implica os dois lados do possível encontro. Parece-me que ante situações especiais todos nos bloqueamos. Imagino que será difícil para homens e mulheres aventurarem-se por territórios que sabemos que foram luminosos."

Viúva há dez anos de um grande amor, lembra-se de há algum tempo ter achado graça a um homem bonito, dez a 15 anos mais novo, que lhe perguntou se gostava dele. "Fiquei aflita, atrapalhei-me na resposta, fugi. Não tive coragem de assumir que sim, que ele me despertava desejo. Por vários motivos e também porque não queria confrontar-me com a minha decrepitude." Sorri. "Nunca mais tive uma relação física. Tenho outro tipo de relações. Agora por exemplo escrevo-me, troco mails e mensagens, com um homem inteligente, interessante, da minha idade. Dá um certo prazer, um certo arrebatamento. Mas não tenho planos de ir além disto."

Não imaginas poderes ter ainda uma relação do tipo "clássico"? . "Em caso de dar-se, seria outra coisa, não o sentimento imberbe da adolescência, nem a paixão dos 30, nem a serenidade dos 50. Teria de ser, digo eu, algo diferente. Se se pudessem juntar todas estas coisas, paixão, serenidade, emoção, maturidade, seria maravilhoso. Se conheces alguém que o tenha conseguido, conta-me. Se eu souber de alguém, conto-te. Mas acho que não, que as circunstâncias alinham-se uma vez na vida, e nem sequer para todas as pessoas, de modo que acertar duas vezes no alvo numa única vida é muito difícil e seria até injusto. Oxalá encontres experiências gloriosas em gente que não se resigna, que está disposta e que realize o que lhe pede o corpo e a alma. Temo que não seja o meu caso, mas encanta-me falar de amor."

E que bem fala - e que bem conta o conto do seu confinamento, quando começou a sentir "uma presença, uma sensação de 'alguém', alguém não sei de que tempo, se presente, passado ou futuro, sem nome nem rosto, mas que me trazia a paz da boa companhia". Em vez de passar o dia de roupão, começou a arranjar-se cuidadosamente, a pôr na cama os melhores lençóis, um segundo prato na mesa. Como numa história do realismo mágico sul-americano, de Borges ou de Cortázar, viveu aqueles meses nesse embalo - "Tanto que agora, da voragem do dia-a-dia e sem tempo para elucubrações, olho com certa nostalgia para esse período. Embora me estremeça ter posto mesa para dois, consigo percebê-lo. Será que durante o confinamento assumi, sem o ter pensado nem decidido, a possibilidade do pressentimento amoroso que antes não considerava?"

A verdade, prossegue, "é que durante os meses em que estivemos em casa houve tempo para sentir coisas que habitualmente vamos deixando de lado com mil desculpas. Chorámos tanto durante o confinamento porque nos pusemos a sentir sem censuras nem falsos pudores? Será que descobrimos que temos mais sensibilidade e mais capacidades do que nos damos conta? Não te digo que não, creio que o confinamento, como nos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, nos serviu para olharmos, examinarmos e até para reiniciarmos... Ter feito anos nessa altura, sentir o alvoroço do passado no silêncio do presente, foi uma experiência única, impensável antes, inestimável agora. Tive a perceção de que esse dia de aniversário era o retrato, a imagem do que resta. Sem dramatismo: muito - e bom - passado, um presente com muito investimento próprio, ou seja, dar o que se queira receber. A frase de São João da Cruz que tanto nos marcou no período formativo: 'Põe amor onde não haja amor e encontrarás amor'".

Dez anos mais novo, Pedro admite que ainda não atirou a toalha. "Quando fantasio sobre o amor - e é fantasiar - a ideia passa por um namoro constante de pessoas com casas separadas. Acho que é isso, se me acontecer alguma coisa ainda, que será. Uma espécie de amizade erótica. Era o que eu queria. Mas o que me aparece são miúdos mais novos que têm uma panca por homens mais velhos. E querem vir cá para casa, fazer vida comigo. É muito engraçado quando as pessoas se interessam por ti pelas outras características - seres inteligente, culto, pela tua ação pública - mas quero ser desejado eroticamente. Não quero ter uma relação de guru - interessam-me relações iguais, equitativas. Queria uma relação com um homem da minha idade que estivesse no mesmo lugar. Desinteressei-me do sexo pelo sexo - o esforço não compensa. Estou mais naquela do namoro. É um bocado aquela coisa de last chance [última oportunidade]. Porque depois começa o envelhecimento à séria. Até aos 65 a coisa ainda vai, ainda é a porta de entrada da velhice. Ainda temos uma margem de manobra."

Destaquedestaque"É um bocado aquela coisa de last chance. Porque depois começa o envelhecimento à séria. Até aos 65 a coisa ainda vai, ainda é a porta de entrada da velhice."

Bem do lado de lá dos 65 - tem 72 anos -, viúvo há quase dez depois de uma vida com muitas, muitíssimas, relações e um grande amor, aquele que teve pela primeira mulher (por quem se apaixonou "à primeira vista, pensei: 'é aquela'", se separou na segunda metade do anos 1990 e que morreu pouco depois), João contradiz o veredicto. "Pensei que aos 60, 60 e tal anos deixava de desejar. Que seria uma paz, um sossego. Que não teria esta inquietação que é o desejo. E de alguma maneira ansiava por essa paz." Porquê ansiar pelo fim? "Porque gosto muito. Faz-me falta e quando não tenho fico triste. Faz-me falta o abraço, faz-me falta a ternura. Pode-se dizer em psicanálises baratas que os meus pais eram muito secos, que não havia ternura. Seja o que for a verdade é que isso é tão importante para eu estar bem que me faz muita falta. Continua a fazer-me falta quando já devia estar em sossego. É que é a coisa melhor da vida."

O quê? "O afeto, o amor." E o sexo? "O sexo faz parte do pacote. No amor sentimental tem de haver sempre essa componente, para mim - por enquanto. Talvez nos 80 seja como para as senhoras do lar de que me falou [as tias de Teresa] -, pequenas coisas: gestos, olhares, afeto. Mas as grandes satisfações, as grandes alegrias da vida, são essas: ir para a cama com uma mulher e dar prazer. Fazer a outra pessoa feliz - sem me violentar, sem me sacrificar, sem fazer coisas de que eu não gosto, não há nada melhor, é a felicidade. O afeto é também uma projeção do que se pode oferecer à outra pessoa."

Destaquedestaque"Pensei que aos 60, 60 e tal anos deixava de desejar. Que seria uma paz, um sossego. Que não teria esta inquietação que é o desejo. E de alguma maneira ansiava por essa paz."

Corpo, princípio e fim de tudo? "A gente tem a coisa da velhice na cabeça, mas não temos consciência de que estamos velhos. E nas relações amorosas o corpo tem muita importância. De repente reparo que o corpo não responde." Isso sucedeu quando? "Aos 60 e tal tive uma breve paixão por uma rapariga muito nova, 30 anos de diferença, e tive de parar com aquilo porque não era capaz de ter ereção com ela. Pensei que tinha acabado. Recomendaram-me que tomasse alguma coisa mas esta rapariga não queria que tomasse. E isso fez que descobrisse coisas sobre a sexualidade feminina de que não tinha consciência. Mergulhei no sexo da mulher. E percebi que antes fazia mal amor, ainda que as mulheres gostassem. Era uma coisa pobre, que se ia num esguicho. A idade teve essa contrapartida - os inconvenientes transformaram-se num trunfo, numa coisa boa. Hoje em dia acho - pode ser fanfarronice, claro - que sei dar prazer a uma mulher como não sabia. E as mulheres descobrirem a sua sexualidade comigo é muito gratificante."

Outra descoberta grata foi a de que "aumentou muito o leque das mulheres que me interessam, que acho sexy. Quando tinha 40 anos não me interessava uma mulher de 50. Aos 70 posso interessar-me por mulheres até aos 70, a começar nos 40 e tal. Abaixo disso... Não. Por vergonha, porque acho que não sou digno. Que o meu corpo envelhecido é demasiado contrastante com o corpo de uma rapariga. Deixei sequer de pôr essa hipótese".

Esta dádiva - "a descoberta do erotismo aos 72 anos, quando pensava que já não teria isto na vida" - coincide com "as limitações que tem uma relação afetiva, amorosa, com a minha idade. E o impasse que isto me cria".

Porque ainda vive "a ideia de amor que tinha quando era novo, que é a ideia do amor para a vida, ou seja, de termos um futuro. O amor não é uma coisa episódica - é uma coisa que tende para a eternidade. É por isso que estamos sempre a dizer 'até ao fim da vida, até ao fim do mundo'. Essas expressões são recorrentes entre dois amantes: amor para sempre. Só que o para sempre quando se é mais velho é um para sempre muito pequenino. Isso para mim, da maneira como eu vivo, está sempre a inquinar qualquer tipo de relação".

A ideia da finitude? "Sim. Enquanto aos 30 não pensava na finitude - vamos até onde for, vamos viver a vida toda assim - a projeção para o futuro aos 70 é muito pequenina. É um dos traços característicos, para mim, do amor na velhice. Que marca tudo. Imensas vezes nas conversas as pessoas mais novas dizem 'um velhote de 70 e tal'. Dizem isto sem reparar que estou ali. É normal. E isso está sempre a dizer-me 'ó pá, não tenhas veleidades'. E isso também tem influência no que espero da vida e do amor."

Destaquedestaque"O amor não é uma coisa episódica - é uma coisa que tende para a eternidade. Só que o para sempre quando se é mais velho é um para sempre muito pequenino."

Daí que tivesse tentado mentalizar-se para uma espécie de estoicismo amoroso. "Que era dizer: ok, eu já não tenho ninguém com quem possa viver o resto da minha vida. Portanto vou procurar ter muitas relações, no sentido de ter amores - ter, enfim, afetos. Nada que me prenda nem a quem eu prenda. Porque não posso oferecer nada de especial." Faz silêncio. "Até haver uma altura em que a solidão é inexorável. Mas isso é o que acontece à generalidade das pessoas, mesmo aquelas que viveram durante toda a vida com uma pessoa: há uma que morre antes da outra. Em regra. E um dos problemas da idade é que não envelheci com ninguém, as pessoas com quem deveria ter envelhecido já não existem. Achava que tinha uma grande capacidade de aguentar a solidão e hoje em dia tenho mais dúvidas - por causa da merda do confinamento e por não ter hipóteses de companhia. Se calhar se não houvesse isso."

Isso e outra coisa. Está já escuro na sala onde João se confessa, à frente de um copo de whisky: começámos ao fim da tarde, naquilo que ele chama "a luz gloriosa de setembro", e veio a noite. É nesta penumbra em que tomo notas sem ver o que escrevo que me diz: "O que tinha posto na cabeça está a falhar. Porque há uma mulher de quem gosto muito, com 40 e tal anos. Ela também gosta muito de mim. Acho que era uma hipótese de eu envelhecer com, passar o resto da minha vida, que já não é muito". Há um porém, porém. "É casada, com filhos. E acho uma estupidez ela largar o marido e os filhos porque o que tenho para oferecer a uma mulher são cinco, seis anos de vida. Teria teoricamente cinco anos de felicidade comigo. Chegava aos 50 e pouco e teria mais 30 anos para viver. É uma parvoíce. Seria diferente se eu tivesse 50. Em teoria teríamos mais 20 anos."

E ela que acha? "Que não é uma parvoíce. Diz: 'Eu ainda não sou capaz, mas vou ser capaz.'" Leva o lenço ao rosto - é assim que sei que está a chorar; a voz continua a direito. "O enorme desgosto é isso: ter à mão de semear uma coisa que acha que pode ser a sua felicidade mas que não pode."

Oxalá, dizia-me Helena, "encontres experiências gloriosas em gente que não se resigna, que está disposta e que realize o que lhe pede o corpo e a alma. Se encontrares, conta-me". Como combinado, aqui fica o conto - sem fim, porque nunca se sabe como acaba.

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