"Ignorar que tabaco sem fumo é um mal menor é como preferir abstinência sexual ao preservativo"

Os cigarros eletrónicos e o tabaco aquecido são caminho para uma solução ou um novo problema que tem de ser cortado pela raiz? A pergunta serviu de base a uma conferência organizada pelo Food and Drug Law Institute, que reuniu em Washington cientistas, especialistas, ativistas, legisladores, membros da FDA e representantes da indústria do tabaco num debate sobre as exigências dos tempos na luta contra o fumo, a que o DN assistiu.
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"O cigarro é como as agulhas usadas, temos de separá-lo da substância. A nicotina não mata, o fumo mata. Só agindo rapidamente sobre as verdadeiras causas poderemos evitar milhões de mortes entre fumadores. A falta de regulação nesse sentido - que incentive a substituição dos cigarros por alternativas sem fumo - é como, perante uma epidemia de uma doença sexualmente transmissível, apelar à abstinência sexual e rezar para que nos oiçam, em vez de advogar o uso de preservativos."

A comparação com a abordagem ao sexo nos primeiros anos de VIH-sida é repetida como uma chamada de atenção para o erro que se está a cometer na abordagem às alternativas sem fumo para quem não quer ou não consegue deixar de fumar. E não é feita pela indústria tabaqueira.

No caso acima, o alerta é deixado por Cliff Douglas, vice-presidente da American Cancer Society e que há 30 anos lidera aquela instituição antitabagista americana, na conferência do Food and Drug Law Institute sobre o tema, que levou alguns dos maiores especialistas, reguladores e representantes da indústria a Washington para dois dias de debate. E no país que mais radicalmente tem combatido o tabaco, uma coisa parece clara entre especialistas de saúde, cientistas e filantropos que têm dedicado muita energia e fundos a esta luta: só apostando em alternativas sem fumo se pode evitar que continuem a morrer sete milhões de pessoas por ano no mundo.

Na conferência que durante dois dias se desenrolou no National Press Club em Washington foram precisamente o lado da saúde e a da redução dos malefícios que estiveram no centro das atenções, com três pontos a dominar o debate: É possível evitar tantas mortes por esta causa? Como se desenha uma estratégia antitabágica eficaz? Que atitude deve o governo ter sobre este assunto? E é consensual que todos têm um objetivo: travar uma epidemia que continua a matar milhões no mundo inteiro. Com uma preocupação acrescida de proteger as crianças para que não comecem a fumar.

Mas se para uns isso passa por informação, educação e inovação no sentido de encontrar soluções intermédias que sejam menos nocivas para quem continua a fumar, para outros a abordagem deve ser de corte radical. Deste lado está a Food and Drug Administration (FDA), que no primeiro dia da conferência, na quinta-feira, pela voz do seu diretor, Mitchell Zeller, anunciou a suspensão dos trabalhos que a entidade governamental tinha vindo a desenvolver no sentido de criar incentivos para mover os fumadores para soluções menos nocivas. E os defensores de cada um dos pontos de vista comportam-se como inimigos em lados diferentes de uma guerra.

"Isto quer dizer que não haverá incentivos para a indústria mitigar o fumo", lamentou Dennis Henigan. "Os consumidores não têm informação fidedigna sobre os novos produtos sem combustão que há no mercado. Entre os miúdos, o tabaco está a voltar a ser uma epidemia. E a FDA está a recuar quando devia avançar em duas frentes: proteger as crianças e ajudar os fumadores a reduzir e a optar por soluções com menos risco", defendeu o responsável pela Campaign for Tobacco-Free Kids.

Proibir ou incentivar alternativas

O surgimento dos cigarros eletrónicos e de produtos sem fumo como o iQos (que não é vendido nos Estados Unidos) tem sido encarado pelos mais conservadores como uma estratégia da indústria tabaqueira para garantir a vida do seu negócio. Mesmo os estudos independentes desenvolvidos ao longo de uma década, e que comprovam que ainda que a nicotina seja o elemento viciante é o fumo a verdadeira causa de preocupação, têm sido por esses descartados. E se em países como o Reino Unido tem sido feito um esforço para substituir nas mãos dos fumadores os cigarros tradicionais por soluções sem combustão (em que os riscos para a saúde são reduzidos em mais de dois terços, de acordo com a maioria dos estudos científicos desenvolvidos), noutros, como os EUA, as instituições oficiais nem querem ouvir falar nessa possibilidade.

"O que acontece é que acabamos por privilegiar o negócio dos cigarros tradicionais, que são muitíssimo mais perigosos para a saúde dos fumadores. Ao ignorarmos as evidências de que as alternativas sem fumo têm menos riscos - ainda que não existam ainda provas dos seus efeitos a longo prazo, porque não existem há tempo suficiente para serem testados nessa dimensão - estamos a prolongar a vida a um produto que sabemos que é altamente tóxico na vida daqueles que não querem ou não conseguem deixar de fumar", lamenta Dorothy Hatsukami, do Centro para a Prevenção do Cancro da Universidade de Minnesota. Para esta especialista, que faz parte do grupo de estudo para a regulação de produtos de tabaco da Organização Mundial de Saúde, "educação, inovação e rapidez" são a chave para fazer baixar o número de mortes entre fumadores. "Os produtos com e sem combustão têm de ser tratados de forma diferente", sublinha.

A preocupação é transversal, mas quanto a métodos para combater o tabaco há dois lados bem definidos: o das autoridades, que resistem a fazer distinções, e os especialistas, que as consideram fundamentais para resultados rápidos.

"Não é a nicotina que mata, é o fumo, e hoje existem produtos menos nocivos. Apostar neles seria também uma forma de ajudar o mercado a inovar cada vez mais", considera David Sweanor, professor de Direito no Centre for Health Law, Policy and Ethics da Universidade de Otava e professor honorário da Universidade de Nottingham. O filantropo que tem dedicado décadas da sua vida à luta contra o fumo estabelece um paralelo para a atitude (ou falta dela) que o governo americano tem tido no que respeita às alternativas que várias empresas desenvolveram para garantir soluções menos perigosas para quem não quer ou não consegue deixar de fumar: "É como se víssemos a nossa casa está a arder e mandássemos uma carta para o quartel dos bombeiros, onde alguém vai analisar tudo o que se passa, o que causou o fogo, o que havia na casa e só depois de ter a certeza de que nada lhe escapou decidir. Entretanto, nos últimos dez anos morreram cinco milhões de americanos. O sistema é mau."

Especialistas pedem pragmatismo

A relutância do governo americano, nomeadamente do novo comissário da FDA, Scott Gottlieb, em legislar especificamente sobre produtos com menos risco do que os cigarros tradicionais - tratar de forma diferente o que é distinto em vez de combater mais violentamente produtos "que acarretam menos riscos e podem contribuir para reduzir a prevalência" - tem sido muito criticada, nomeadamente entre especialistas e associações que combatem o tabagismo. Sobretudo numa altura em que o JUUL, cigarro eletrónico criado por dois empreendedores de Silicon Valley (Adam Bowen and James Monsees), ganhou uma popularidade assustadora entre os adolescentes americanos.

Com um design moderno e do tamanho de uma pen, é fácil de esconder e passar entre miúdos, tem aromas e sabores apelativos e tornou-se muito rapidamente um símbolo de statu social. Num par de anos, o JULL conquistou mais de 70% do mercado americano e, de acordo com o responsável da FDA Mitchell Zeller, perto de metade dos miúdos do liceu já o usam.

Para o governo americano e a Food and Drug Administration, a única solução é ser radical e tratar com igual dureza todos os produtos à base de nicotina. E por isso têm sido radicais opositores do cigarro eletrónico e de soluções que passam por tabaco aquecido enquanto alternativas menos lesivas para os que continuam a fumar. Uma atitude que é contestada por muitos especialistas de saúde por não informar e esclarecer quanto aos riscos distintos dos diferentes produtos. Estes têm sido mesmo críticos ferozes das campanhas estatais direcionadas para os jovens, em que essas alternativas são apresentadas de tal forma que, acreditam, os jovens são levados a pensar que é preferível continuar a fumar cigarros tradicionais.

"A FDA soube criar incentivos às farmacêuticas para encontrarem soluções capazes de substituir o óleo de serpente que era vendido como medicamento e muitas vezes acabava por envenenar quem o tomava; soubemos criar incentivos para que se desenvolvesse sistemas menos poluentes do que os combustíveis usados pela indústria automóvel e a aviação. Qual é a diferença? Não é difícil entender que perseguir os produtos de tabaco sem fumo só está a ajudar a indústria tradicional, quando devia estar a criar-se incentivos para reduzir o número de mortes causadas por esta epidemia. Essa mudança de atitude é urgente", sublinha Sweanor, para quem "melhor informação é essencial, é a única via que pode conduzir à mudança".

Qual é o maior obstáculo para que o governo decida seguir esse caminho? A subdiretora do centro regulatório da FDA para a área, Grail Sipes, assume: "Ninguém gosta de ser processado. Dar um tratamento diferente a produtos que não estão ainda suficientemente testados no terreno, cujos efeitos a longo prazo desconhecemos, acarreta um grande risco."

A falta de coragem para dar esse salto foi amplamente criticada pelos especialistas presentes, que recordaram que a FDA teve uma postura bem distinta quando a epidemia da sida alastrava: para tentar conter a mortandade, aceitou que se apostasse em medicamentos inovadores e terapias ainda não suficientemente testadas para se dizerem seguras.

Informação, educação, inovação e males menores

Um caminho semelhante, defenderam os especialistas presentes, devia ser tomado quanto ao tabaco, sendo a informação transparente e a base científica os fatores que apontam como mais úteis e necessários para uma mudança de comportamentos capaz de reduzir rápida e significativamente o número de mortes, de forma a incentivar a inovação no sentido de encontrar produtos com cada vez menos risco para aqueles que não querem ou não conseguem deixar de fumar.

Para David Sweanor, a resistência da FDA relativamente a informar os consumidores quanto ao cigarro eletrónico e aos produtos de tabaco sem fumo são uma teima injustificável. "Não há aqui ciência, há ideologia. Tentar forçar a mudança nunca dá bom resultado - porque ao provocá-la não sabemos qual vai ser o resultado." O filantropo e antitabagista exemplifica com a instalação de lombas nas ciclovias dos parques, para impedir que os ciclistas andassem demasiado depressa; "passaram a contorná-las matando a relva à volta de cada um desses obstáculos".

Raymond Niaura, professor de Ciências Sociais e Comportamentais da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Nova Iorque, concorda. "Sigam a ciência." Alertando para a falta de isenção que leva cientistas e instituições a buscar os estudos e argumentos que dão razão aos seus preconceitos e a descartar os restantes com demasiada facilidade, o especialista lembra que, descontados esses, restam os factos. "E é um facto que os produtos sem fumo têm menos risco para os fumadores e podem ajudá-los a reduzir ou deixar de fumar."

"Não é possível acabar com isto de uma vez e todos pedem mudanças mais cedo do que tarde, é tempo de tomar uma atitude", esclarece também Clive Bates, diretor da Counterfactual, consultora que defende uma abordagem pragmática às questões de saúde pública. "Campanhas de choque sem base científica servem pouco esses interesses. Se investirmos antes numa abordagem do mal menor, dando informação clara sobre as alternativas aos produtos com combustão, teremos efeitos positivos imediatos."

A jornalista viajou a convite da PMI

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