Mianmar. A terra em que houve reis portugueses

Mala de viagem (118). Um retrato muito pessoal de Mianmar.

Aterrei lá quando este país ainda se chamava Birmânia. Fui à procura não só do património como também de um povo com descendência portuguesa, os "bayingyi". O nome da comunidade deriva do árabe "fheringi", que designava qualquer pessoa de origem europeia, o que já indicia uma origem distinta deste povo. Durante a sua expansão marítima, Portugal registou episódios e relatos de exploradores portugueses que partiram à descoberta de novas terras distantes, deixando as suas marcas um pouco por todo o mundo e, ali, memórias dos exploradores Salvador Ribeiro de Sousa e Filipe Brito de Nicote, que avistaram este território há quatro séculos. Não foi difícil de os descortinar quando pisei uma das localidades da atual República de Mianmar, porque os "bayingyi" têm traços marcadamente ocidentais, com olhos verdes ou azuis, pele mais clara, nariz proeminente e corpos mais peludos do que a maior parte dos birmaneses. Eles constituem-se como a comunidade católica mais antiga neste país de budistas, perfazendo pouco mais de meio milhão de pessoas. Nestas comunidades, ainda hoje se podem ver alguns falantes de um crioulo de origem portuguesa e algumas tradições que os ligam aos seus antepassados antes do domínio holandês. Estima-se que as populações de origem portuguesa rondem entre as 200 pessoas por aldeia e as 3 mil em localidades maiores. Até 1970, os "bayingyis" não eram reconhecidos como população birmanesa, sendo considerados estrangeiros, pela sua semelhança aos povos europeus e pela religião cristã. Conta-se que, nas origens, o povo de Pegu, uma região da Birmânia, resolveu aclamar três marinheiros portugueses como os seus legítimos monarcas. O primeiro foi Salvador Ribeiro de Sousa, que nasceu em Ronfe (Guimarães), no século XVI, tendo sido militar e comendador da Ordem de Cristo. Passou a chamar-se Massinga. Um outro foi o lisboeta Filipe Brito e Nicote, nomeado pelo vice-rei capitão-geral daquelas conquistas, tomando o nome de Nga Zingar e ocupando o lugar de Salvador Ribeiro de Sousa, que voltaria a Portugal. O terceiro português que se tornou rei da Birmânia foi Sebastião Gonçalves Tibau, natural de Santo António do Tojal, que fundou na ilha de Sandwip uma república de piratas, cerca de 3 mil, dos quais ainda hoje existem descendentes. Piratas lá, como cá, mas os de cá são de outra espécie. Nesta viagem, levei comigo a obra de George Orwell, baseada em factos históricos vividos pelo autor nos seus 5 anos naquele país, então colónia da Inglaterra. Fui à descoberta dos bazares e quiosques descritos: "O bazar era um recinto que lembrava um redil em ponto grande, com quiosques baixos, quase todos com telhados de colmo, à volta. No recinto, fervilhava um enxame de gente, estrelejavam os gritos e as cotoveladas; a confusão dos seus trajos polícromos lembrava uma cascata impetuosa a transbordar de um vaso." (George Orwell, "Dias da Birmânia", Moraes Editora, 1983). Lá estavam - não exatamente iguais como no período em que Eric Arthur Blair, de pseudónimo George Orwell, lá viveu dos 19 aos 25 anos (1922 a 1928). O que vi igualzinho foram as filas de mulheres a balançarem canastras de legumes à cabeça e crianças de olhos arregalados a fixar-nos, talvez bisnetos dos que miravam os europeus daquele tempo.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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