Entre a vida e a morte com Raul Seixas

Fomos contemporâneos em clínicas para dependentes químicos. Neste mês completam-se 30 anos de sua morte.

Raul Seixas, o cantor e compositor brasileiro, fará 30 anos de morte no próximo dia 21. O Brasil será inundado de eventos em todos os níveis, terráqueo, cósmico e ectoplásmico, dedicados a ele. Haverá shows em sua homenagem, filmes de cinema, lançamento de discos e vídeos, especiais de televisão, suplementos de jornais, novas biografias, estudos académicos. E, eu sugeriria, cerimónias de magia negra, oficializadas pela Besta - que ele praticou em certa época.
Provavelmente ficarei alheio a esse festival em torno de Raul. Nunca fui um de seus maiores admiradores e, por acaso, os anos em que morei em Lisboa, de 1973 a 1975, foram aqueles em que ele surgiu com estrondo na cena musical do Rio. Quando voltei para o Brasil, ele já entrara nas suas fases cíclicas, alternando fama e anonimato. E só não foi assim até morrer porque, nos últimos anos de vida, já tinha sido abandonado pela imprensa, pelas gravadoras e pelo público. Ninguém queria saber dele. Os problemas com drogas, os compromissos que não cumpria e os shows a que não comparecia haviam liquidado sua carreira.

Mas bastou-lhe morrer, em São Paulo, a 21 de agosto de 1989, para que, inexplicavelmente, se iniciasse um culto, quase uma religião, a seu respeito. Tornou-se uma lenda. Seus discos, todos fora de catálogo, foram relançados. Escreveram-se biografias, nenhuma por biógrafos de verdade, mas por seus súbitos fãs e idólatras. Seu ex-parceiro Paulo Coelho teve de dar dezenas de entrevistas sobre a convivência que tiveram - não sem certo desprazer porque, ao contrário do que se pensa, os dois não se davam bem. E uma das viúvas de Raul - não a última, mas a mais esperta - descobriu, na Bahia, em poder da mãe do artista, um baú do qual começou a extrair material "deixado por ele". Pela quantidade de produtos que ela tem lançado nesses 30 anos, o famoso "baú do Raul" é o mais inesgotável na história dos baús.
Bem, conto tudo isto para dizer que, se não participei nem da vida nem da morte de Raul Seixas, estive muito próximo dele num período em que ele estava exatamente entre uma coisa e outra - e eu também.

Em janeiro e fevereiro de 1988, eu e Raul estivemos internados em clínicas para dependentes químicos na cidade de Cotia, a 30 quilómetros da cidade de São Paulo. Não na mesma clínica, mas em instituições a cerca de 500 metros uma da outra. Por coincidência, e sem nos conhecermos, entrámos e saímos na mesma semana. Um dos nossos, Reinaldo, conhecia alguns que tinham ficado internados na outra clínica e resolveu promover encontros em que pudéssemos trocar experiências e nos ajudarmos na coisa mais difícil que acontece quando se deixa de beber - que é continuar sem beber.

Entre os que nos reuníamos na casa de Reinaldo, havia um milionário, um industrial, um executivo da indústria de cigarros Philip Morris, um operário, um sujeito bem apessoado casado com uma mulher rica e feia, um diretor de teatro, um jornalista - eu - e Raul Seixas. Alguns já haviam passado por outras internações, mas diziam que, "desta vez", iriam se libertar da dependência. Para mim, aquela havia sido a primeira, e eu não sabia o que me esperava. Todos ali tínhamos entre 30 e 50 anos, éramos casados, alcoólatras e, para alguns, havia uma segunda droga na história: cocaína, LSD, comprimidos. A de Raul era o éter.

Em comum entre nós, antes da internação, o facto de que estávamos todos indo para o buraco. Já tínhamos perdido quase tudo em matéria de profissão, carreira, família, saúde e amigos. Vivíamos intoxicados, anémicos, inchados, apáticos e imundos. Mas, depois de quase dois meses de internação, tendo passado pelas piores síndromes de abstinência e sobrevivido, nosso aspeto nas reuniões na casa de Reinaldo era completamente diferente. Estávamos saudáveis, corados, barbeados, tomávamos hectolitros de Coca-Cola e parecíamos confiantes em que iríamos recuperar tudo que a bebida nos roubara.

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Todos confiantes - menos um. Raul Seixas se deixava ficar pelos cantos, acabrunhado, múrmure, alheio à atmosfera de otimismo e euforia que reinava na sala. Era como se já não soubesse o que significava estar sóbrio, lúcido, seguro de si. As tantas semanas de internação, pelo visto, não lhe tinham ensinado que, agora, só dependíamos de nós mesmos para nos libertarmos das substâncias de que havíamos sido escravos - e que a única maneira de fazer isto era não tomar a primeira dose.
Mas, embora soubéssemos disto na teoria, a prática era diferente. Quase todos ali fraquejaram e recaíram - voltaram a beber. Alguns se internaram de novo e conseguiram se recuperar; outros morreram. Apenas dois nunca mais beberam: eu e o diretor de teatro. Raul foi o primeiro a retomar o uso das substâncias, a entregar os pontos e morrer - apenas um ano e meio depois daquelas reuniões. Sofria de diabetes, certamente estimulada pelo alcoolismo, e já perdera dois terços do pâncreas. A recaída abreviou seu destino.

As comemorações sobre seus 30 anos de morte vão falar dele como um herói, um "rebelde", uma "vítima do sistema". Mas ele não foi nada disso. Apenas um artista entre tantos, cujo talento se dissipou quando, depois de tomar um drinque, esse drinque tomou um drinque e, finalmente, o drinque o tomou.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de O Anjo Pornográfico - A vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).

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