Catatumbo!!!
Com cerca de 1,2 milhões de relâmpagos por ano, o Catatumbo é o lugar mais eléctrico do mundo. Soa estranho, num país mergulhado nas trevas.
Há vidas que são um assombro. Este, a quem Cervantes chamou "monstro da Natureza", aos cinco anos já compunha versos e sabia ler latim e castelhano. Aos doze, escreveu a primeira peça. Foi soldado da Invencível Armada, combateu na Batalha de Ponta Delgada, ao largo de São Miguel, escreveu 3000 sonetos, três novelas, quatro epopeias, 1800 comédias. No campo sentimental, teve mulheres às dúzias e, entre naturais e legítimos, quinze filhos documentados. Tentaram assassiná-lo, foi preso e desterrado, conheceu os ardores da censura. Na crise da meia-idade, fez-se padre convicto e místico, mas não casto. Saiu de cena aos 73 anos, aureolado de glória, e sepultaram-no no coração de Madrid. Porém, sem que se saiba como nem porquê, os seus ossos cansados acabariam mais tarde por ir parar à vala comum, em local desconhecido.
Falamos de Lope de Vega, pois claro. Ao seu génio se deve La Dragontea, poema épico publicado em 1597 que narra as desventuras de Francis Drake por terras do Novo Mundo, e sua morte às mãos do general Alonso de Sotomayor. Na realidade, Drake morreu de disenteria, mas para o caso pouco importa. O que importa é que La Dragontea é o primeiro escrito conhecido que fala do relâmpago de Catatumbo. Melhor dizendo, dos relâmpagos de Catatumbo, tantos eles são. Às vezes, mais de 60 clarões por minuto. O fenómeno natural, maravilha e pavor do mundo, ocorre na bacia do lago de Maracaibo, na Venezuela. Os relâmpagos vêem-se a larga distância, até na vizinha Colômbia (a mais de 400 quilómetros!), mas não têm trovões e fazem pouco ou nenhum ruído, já que as descargas eléctricas têm lugar a grande altitude, no céu longínquo. O espectáculo é frequente, mais de 260 noites por ano, e prolongado, chegando a durar dez horas por noite, começadas ao entardecer. O lago é continuamente iluminado pelos clarões celestes e por isso também falam do "Farol de Maracaibo", pois as embarcações podem navegar sem problemas a noite inteira, como se fosse dia, e os pescadores orientam-se pela luz dos raios, que caem com mais intensidade na parte sul, a zona pantanosa da foz do rio. O Catatumbo regista a maior densidade de descargas eléctricas do mundo, com mais de 250 relâmpagos por quilómetro quadrado ao ano, e está evidentemente inscrito no Livro Guinness dos Recordes. Em 2016, a NASA qualificou a região como "a nova capital dos relâmpagos", pois anteriormente havia uma zona do Congo, a aldeia montanhosa de Kifuka, que também disputava esse título, com 158 relâmpagos por quilómetro quadrado. Contudo, após dezasseis anos de pesquisas ficou cientificamente provado que é ali, na foz do Catatumbo, que os deuses se zangam com mais frequência. Os locais chamam-lhe carinhosamente "tempestade eterna", mas já houve sobressaltos: em 1906, os raios desapareceram durante umas três semanas, ao que parece por causa do tsunami provocado por um terramoto de grande magnitude, e o El Niño e a terrível seca de 2010 fizeram com que os relâmpagos cessassem durante meses, levando muitos a pensar que o fenómeno desaparecera para todo o sempre. Mas a festa regressou em força, para alegria dos habitantes do estado de Zulia, cujo brasão e a bandeira ostentam um faiscante relâmpago a atravessar um Sol radioso. As descargas de electricidade produzem uma enorme quantidade de óxido de nitrogénio, depois convertido em ozono, e alguns dizem que o relâmpago de Catatumbo é o único fenómeno natural do mundo que protege a nossa atmosfera dos raios ultravioletas. Os estudos mais informados concluíram, no entanto, que é pouco provável que o O3 gerado no Catatumbo consiga alcançar a estratosfera a ponto de remendar a camada de ozono que recobre o planeta. Surgem agora novas ameaças, com cientistas a sustentar que as alterações climáticas e a desmatação das terras em redor do rio e do lago poderão diminuir a prazo a frequência dos relâmpagos, pondo em causa o título mundial e a candidatura a Património da UNESCO.
Muitos falaram desta maravilha, começando por Lope de Vega, que a descreveu primeiramente, mas nunca a viu. Porém, o facto de a ter mencionado no seu poema épico é prova de que já então o relâmpago de Catatumbo espantava os conquistadores espanhóis e, antes deles, os povos índios. Os wari diziam que se tratava de uma concentração de milhões de pirilampos, que todas as noites se reuniam ali para prestar homenagem aos pais da Criação. Os yukpas e os wayuus juram que é uma manifestação dos espíritos de antepassados mortos e chamam-lhe "eterno resplendor nas alturas". Nos alvores do século XIX, o grande Alexander von Humboldt, que andou por perto no encalço de enguias eléctricas e de chuvas de meteoros, descreveu os relâmpagos de Catatumbo como "explosões de electricidade que parecem fulgores fosforescentes". Até hoje não se sabe ao certo qual a origem desta retumbante beleza, de que se pode ter uma pálida mas esclarecedora imagem em alguns vídeos do YouTube. Disseram uns que tudo derivava do modo anómalo como os ventos circulam na região, asseveraram outros que a causa são os gigantescos depósitos de urânio que ali existem, e que supostamente atrairiam os relâmpagos. Mais recentemente, afirmou-se que a libertação de metano nos terrenos pantanosos da foz do Catatumbo favorece a formação de descargas atmosféricas. Contudo, a hipótese mais plausível aponta para a orografia singular da região e para as condições climatéricas por ela geradas: as correntes de ar quente e húmido transportadas ao longo do majestoso lago Maracaibo, ao atingirem os cumes frios das cordilheiras circundantes - o Andes, as montanhas de Perijá, a cordilheira de Mérida -, levam à formação de gigantescas nuvens verticais, as Cumulonimbus, que se erguem a mais de doze quilómetros de altitude, e são estas as responsáveis pela frequência das descargas eléctricas e, sobretudo, pelo facto assombroso de os relâmpagos ocorrerem sempre no mesmo local e praticamente à mesma hora.
Com cerca de 1,2 milhões de relâmpagos por ano, o Catatumbo é o lugar mais eléctrico do mundo. Soa estranho, num país mergulhado nas trevas, onde ainda há pouco, no passado dia 23 de Julho, houve um novo e colossal corte de energia, que afectou milhões de pessoas em 18 dos 23 estados que compõem a Venezuela, incluindo na capital. Em Março, viveu-se o caos, uma semana inteira sem luz eléctrica, o apagão total: transportes parados, cortes nas comunicações e no abastecimento de água, hospitais em colapso, saques e pilhagens, ruas sem semáforos, ao cair da noite milhões de venezuelanos precipitaram-se para suas casas como podiam, muitas vezes tendo de andar a pé dezenas de quilómetros na escuridão e no medo. Nas duas ocasiões, o governo de Maduro falou em sabotagem, e até tentou culpar a oposição e as potências imperialistas estrangeiras, atribuindo-lhes a autoria de um tenebroso "ataque de carácter electromagnético" (sic). Não se explica, no entanto, porque é que já abandonaram o país mais de quatro milhões de pessoas, um êxodo de proporções bíblicas só superado pela crise síria e que transbordou para a Colômbia, o Equador, o Brasil e o Peru. Quem o diz não são neoliberais de direita nem multinacionais americanas, são dados dos países de acolhimento e de instituições como a Organização Internacional para as Migrações e a Agência das Nações Unidas para os Refugiados. Quem o diz é a Alta Comissária para os Direitos Humanos da ONU, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, que visitou o país no passado mês de Junho e concluiu que, nos últimos anos, "a situação humanitária agravou-se de forma extraordinária". Quem o diz também é Noam Chomsky, um dos pensadores de esquerda - e de esquerda radical - mais influentes do nosso tempo, que, num artigo saído há dias nas páginas do The New York Times, afirmava que na actual Venezuela existem, pelo menos, 590 presos políticos, encarcerados em condições inauditas. O artigo de Chomsky saudava a recente libertação da juíza Maria Lourdes Afiuni, que esteve presa durante dez anos por motivos políticos (concedeu liberdade condicional a um empresário e, meia hora depois, foi detida pelos serviços secretos chavistas). Durante esse longo cativeiro - repete-se: dez anos de prisão, às ordens de Hugo Chávez -, a juíza Afiuni foi vítima de abusos sexuais, sofreu sérias ameaças de morte por parte de reclusos que condenara no passado, teve graves problemas de saúde, sequelas para toda a vida. "A Venezuela", escreve Noam Chomsky, "enfrenta a mais grave crise humanitária da história recente da América Latina". Os yukpas, de que atrás se falou, que chamam "eterno resplendor nas alturas" ao relâmpago de Catatumbo, saíram rumo à Colômbia a partir do seu território natal, as montanhas de Perijá, onde se formam as colossais massas de ar responsáveis pelas descargas eléctricas do Maracaibo. Pereceram às centenas durante a jornada, outros ficaram retidos na fronteira, junto à Ponte Francisco de Paula Santander. Houve diversos casos de crianças subnutridas, mortas de fome e doença, e os yukpas queixam-se de terem sido mandados regressar para trás pelas autoridades colombianas, que se recusaram a comentar um caso que tem todas as características de um genocídio em massa.
Entretanto, os venezuelanos que permanecem no seu país enfrentam uma inflação que, segundo o FMI, chegará aos 10 000 000% no final deste ano. Nicolás Maduro cortou cinco zeros do bolívar e fez uma depreciação de 96% da moeda; só que, no mesmo período, o bolívar caiu outros 99%. No passado mês de Maio, o Banco Central da Venezuela revelou que a economia caíra para metade dos valores de 2013. Num país em que, segundo a BBC, 90% das pessoas vivem na pobreza, a minoria dos "boligarcas" - os oligarcas da revolução bolivariana de Chávez e de Maduro - frequenta supermercados com produtos importados e de luxo, ou restaurantes exclusivos como o La Esquina, em Caracas. No início deste ano, houve um aumento de 300% do salário mínimo nacional, que em Junho equivalia a uns espantosos 5,75 euros/mês (leu bem: 5,75 euros por mês, informou este jornal na sua edição de 12/6/2019). O problema é que, de acordo com os cálculos da Federação Venezuelana de Professores, devido à hiperinflação o custo básico alimentar mensal é de 502 euros/mês e um trabalhador necessita de 138,4 salários mínimos para prover ao sustento de uma família de quatro elementos.
Perante este cenário de catastrófico, há quem persista criminosamente na negação dos factos e na ocultação da realidade. Outros acreditam nos esforços diplomáticos actualmente levados a cabo pela Noruega em Barbados, na acção do Grupo de Lima ou na intervenção das Nações Unidas e das suas agências humanitárias. Até agora, porém, na substância nada mudou. Por isso, talvez o mais sensato seja confiar no poder ancestral e tremendo dos relâmpagos do Catatumbo. Que o Farol de Maracaibo ilumine a Venezuela - e o martírio do seu povo.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia