Milagre, Trump e Bolsonaro já acreditam no vírus!

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Um dia, René Descartes, um tipo que pensava, muito e com método, escreveu: "O bom senso é a coisa mais bem partilhada do mundo." Para Descartes todos tinham bom senso, ou pelo menos parecia, pois "cada um pensa tê-lo em bastante quantidade." Eu que penso menos e com pior método, admito que quase todos temos bom senso. A prova é que nem a alguns malucos isso escapa: "Maluco, maluco, mas não põe o cu no fogão..." Eis um dito português que, como quase todos os provérbios, tem razoável bom senso.

Então, sendo tão partilhado, continuou o filósofo a discorrer em Discurso sobre o Método, (1637), o bom senso, essa capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, "é naturalmente igual em todos os homens". Bom senso, todos temos - concluiu Descartes. Outra coisa, diz ele, é termos a mesma opinião. Aí há diversidade no julgar do verdadeiro e do falso porque a opinião não vem de "sermos uns mais desprovidos que outros", mas, isso sim, porque conduzimos os pensamentos por diferentes vias e não valoramos tudo à mesma medida. Quer dizer, pode haver gente a achar bem que se ponha o cu no fogão, sobretudo se as nádegas não forem as suas.

E assim entramos na questão inevitável do coronavírus. Apesar das palavras de Descartes serem antigas, feitas quando Portugal era dos Filipes, elas ainda hoje nos explicam muita coisa. Claro que atacar a pandemia é uma prioridade, mesmo Donald J. Trump sempre considerou assim. Ele tem o suficiente bom senso, igual ao da primeira cidadã apanhada pelo microfone de uma tevê, num passeio lisboeta, ainda nos tempos felizes da Antiguidade, fevereiro de 2020, antes do primeiro infetado português: "Também acho, todos os cuidados com esse tal coronavários são poucos..." Enfim, bom senso, singelo e bem espalhado.

Trump tinha igual bom senso. Produziu foi opiniões diferentes porque o caminho do raciocínio dele passa sempre por valores mais altos, os interesses de um tal Donald J. Trump, interesses que não é qualquer transeunte lisboeta que os tem.

E, recentemente, sempre com o mesmo bom senso (como pode haver outro sobre tamanha epidemia?!) Trump mudou de opinião porque não dava jeito a anterior. Não à salvação dos infetados, não dava jeito era à reeleição do interessado, caso chegasse a novembro com mais de dois milhões de mortos. Por favor, não menosprezem o bom senso de Trump, ignorá-lo é desculpar-lhe os crimes.

Jair Bolsonaro talvez seja outro caso. Talvez. Até ontem ele falou sempre "dessa gripezinha", e isso pode ser que não fosse só opinião mas um caso mesmo de ausência de bom senso. Afinal, Descartes quando explicou o bom senso, essa capacidade repartida por igual entre "todos os homens", já parecia então excluí-la aos calhaus. Outro filósofo francês, o barão d'Holbach, escreveu um século depois de Descartes um livro cujo título tratava já do caso de Bolsonaro: O Bom Senso, ou Ideias Naturais Opostas às Ideias Sobrenaturais.

Assim, a opinião reiterada de Bolsonaro sobre o covid-19, "uma gripezinha", depois de tanto mundo e tanta tragédia mostrar o contrário, podia não entrar, segunda a classificação do barão d'Holbach, na categoria natural de bom senso. O atual presidente brasileiro alinha, e não o esconde, no campeonato das ideias sobrenaturais. Seus ídolos em saúde mental, o pastor Silas Malafaia e o bispo Edir Macedo, ainda há dias insistiam em não cancelar a ida das massas aos cultos religiosos apesar dos riscos de infeção. Nesses casos, porém, do pastor e do bispo, não foi ausência de bom senso. Bom senso têm-no, mas, como se sabe, toda opinião deles passa primeiro pela portagem onde se recolhe o dízimo das massas.

Até ontem, Bolsonaro insistiu em "gripezinha". Agora já a admite um horror. A mudança pode explicar-se por ele estar sujeito a uma influência terrena ainda superior às já aludidas influências sobrenaturais. Trump mudou e Bolsonaro seguiu-o. E isso é bom. São ínvios os caminhos dos senhores pastores que continuam a conduzir ao desastre; já os do egoísta da Casa Branca, e motivados pelos seus interesses egoístas, mudaram de direção. Aleluia! Para este, não para aqueles.

É um milagrezinho que Trump comece a dar conta do perigo do coronavírus e é outro milagrezinho que tenha arrastado Bolsonaro para a luz. Reze quem quiser, e fiquemos céticos os outros homens de boa vontade, torcendo porém todos para que a pandemia seja reconhecida no que ela é: um facto terrível.

E se por acaso, o que provavelmente acontecerá, o pastor Malafaia e o bispo Macedo aproveitarem os milagrezinhos das mudanças das opiniões terrenas, para também eles mudarem as suas, não cobremos a mudança tardia. A peste não é uma maldição, é uma doença que também se combate com templos vazios.

Facto, combater de todas as formas a epidemia, facto, termos os templos vazios, isso agora interessa mais que as opiniões irresponsáveis destes líderes políticos e religiosos. Aliás, sempre suspeitámos que Trump, Bolsonaro, Malafaia e Edir Macedo sempre partilharam com todo o mundo o bom senso, o único, que pode haver sobre o coronavírus. Quer dizer, sobre Jair Bolsonaro não sei. Ele e bom senso, juntar os dois precisa mais do que milagrezinhos. Só um milagre daqueles que até ateu reconhece.

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