Qatar, a monarquia absoluta que se tornou peça central no xadrez afegão

Primeiro como mediador entre norte-americanos e talibãs, depois na ajuda à ponte aérea, no futuro se verá. O pequeno país do golfo Pérsico viu o seu papel ser reconhecido, ajudando a apagar o controverso apoio a extremistas.
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Num dia, o chefe da diplomacia da Alemanha, Heiko Maas, é recebido por Mohammed al-Thani, o ministro dos Negócios Estrangeiros qatari. No seguinte, na quarta-feira, é a vez da congénere holandesa, Sigrid Kaag. Ambos os países europeus seguiram a movimentação das embaixadas dos Estados Unidos e Reino Unido e assentaram em Doha o seu posto diplomático oriundo de Cabul. Petromonarquia vizinha da Arábia Saudita, o Qatar é mais conhecido pela estação de televisão Al Jazeera (cuja orientação editorial entre a versão inglesa e árabe é quase antagónica), ou por o seu fundo soberano deter o Paris Saint-Germain do que pelo seu poder político.

Na realidade, a estação de TV, o clube de futebol ou a companhia aérea são a face visível da estratégia de influência de um país com uma área menor do que Timor-Leste e apenas 300 mil cidadãos (apesar de viverem na península cerca de dez vezes mais pessoas) e iniciada em 1995, quando ascendeu ao poder o xeque Hamad, que abdicou para o atual emir, Tamim, em 2013.

DestaquedestaqueO Qatar financiou movimentos extremistas em vários países após a Primavera Árabe. Entre 2017 e janeiro deste ano sofreu um corte de relações e bloqueio de vários países.

Nesse mesmo ano, o país conseguiu o feito de manter no território uma base aérea usada por norte-americanos e britânicos enquanto acolheu os principais dirigentes talibãs no exílio, os mesmos que a coligação ocidental combatia, numa ação concertada com os Estados Unidos. Trabalhando nas sombras como mediador, em 2018 o Qatar levou à mesma mesa representantes da administração Trump e talibãs, deixando de fora o governo afegão.

Dois anos depois, como já faz parte da história, norte-americanos e talibãs assinaram um acordo que previa a saída das forças estrangeiras do Afeganistão e em troca esses militares não seriam atacados. Mas nem a capacidade mediadora do Qatar chegou para que as negociações que se seguiram em Doha, entre o governo de Cabul e os fundamentalistas, chegasse a bom porto.

O papel do emirado nas últimas semanas foi central, com 40% dos expatriados afegãos a aterrarem na base de al-Udeid. O embaixador em Cabul, Saeed bin Mubarak al-Khayarin, dirigiu as missões de expatriação através da cidade, num vaivém entre a embaixada e o aeroporto, com a sua presença a permitir a passagem nos pontos de controlo talibã e ocidental. Entre as pessoas levadas para o Qatar conta-se uma equipa feminina de robótica, um internato feminino (250 estudantes e pessoal) e ativistas dos direitos das mulheres.

A forma como as autoridades catarianas colaboraram com as norte-americanas, quando a base aérea ficou cheia e sem condições, levou Joe Biden a agradecer ao emir em chamada telefónica. Permanecem 20 mil afegãos no território.

"O Qatar posicionou-se como mediador com os talibãs. Foi uma aposta arriscada, especialmente tendo em conta a visão do grande público, mas compensou", disse à Al Jazeera Cinzia Bianco, investigadora do Conselho Europeu das Relações Exteriores. Ao ser o ponto de contacto preferencial dos talibãs, o Qatar passa a ser visto com outros olhos pelos vizinhos, bem como pelo Ocidente.

"Ao desempenhar este papel de mediação, o Qatar reforça as suas relações com os Estados Unidos e outros atores ocidentais e europeus", disse Elham Fakhro, do International Crisis Group, à Deutsche Welle.

Para trás parecem estar os dias em que o Qatar foi acusado de financiar movimentos extremistas após a chamada Primavera Árabe, da Síria à Líbia; o escândalo de corrupção conhecido como Qatargate relativo à atribuição do mundial de futebol de 2022 ao pequeno país; os Qatar Papers, uma investigação jornalística que demonstrou como a dinastia al-Thani financiava o islão político radical em França e pelo caminho foi comprando dezenas de ministros, senadores e deputados; ou, mais recente, a crise do Qatar, e que opôs o país à Arábia Saudita, Emirados, Bahrein e Egito entre 2017 e janeiro deste ano. Estes países cortaram relações e impuseram um bloqueio económico, denunciando as relações do país com movimentos terroristas e com o Irão.

O primeiro grande desafio do Qatar é manter o aeroporto de Cabul operacional. Ontem chegou à capital afegã uma equipa técnica que vai discutir com os talibãs como fazê-lo.

Tamim bin Hamad al-Thani é o oitavo monarca do Qatar, emirado fundado pela sua dinastia em 1847. Chegou ao poder em 2013 e logo viu a aliada Irmandade Muçulmana ser derrubada no Egito. O financiamento a grupos extremistas levou a um corte de relações e bloqueio comercial da Arábia Saudita e dos Emirados, que terminou em janeiro. Aos 41 anos, com três mulheres e 13 filhos, o xeque vive o momento mais positivo do reinado, a meses de receber o Mundial de futebol.

cesar.avo@dn.pt

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