Falcão: "Jogar futsal na favela, com a claque adversária armada, nunca me assustou"

O jogador brasileiro revolucionou o futsal através dos seus dribles e golos que correram o mundo nos últimos 20 anos. Aos 41, ainda joga no Magnus de Sorocaba, no interior do estado de São Paulo, mas já sem a alegria que o caracteriza.
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Em entrevista ao DN, aquele que para muitos é o melhor jogador de futsal de todos os tempos, relembra o seu início, fala de um fim que está cada vez mais perto e mostra estar de olhos postos num futuro como youtuber. Falcão brilhou nos pavilhões e deu protagonismo internacional ao futsal. Um papel que lhe valeu a admiração de todos, inclusive do internacional português Ricardinho, melhor jogador do mundo na atualidade, que traz o nome do ídolo tatuado no corpo.

Como é que uma criança da periferia de São Paulo chega ao topo do mundo do futsal?

Quando eu era criança não jogava em nenhuma escolinha de futsal, nem sequer pensava em ser jogador, as coisas aconteceram naturalmente. Divertia-me a jogar fosse na associação que o meu pai frequentava, na rua ou na escola. A certa altura, alguém sugeriu ao meu pai que eu deveria ser federado. Eu nem sabia o que é que isso era. Foi então que em 1989, com 12 anos, fui jogar para o Guapira, um clube na zona norte de São Paulo que tinha camadas jovens e que lutava para fugir aos últimos lugares. No primeiro treino "arrebentei" e deram-me a ficha para assinar. Em 2/3 meses tivemos um jogo com o Corinthians, em que perdemos 2-1, mas fui a figura do jogo. Por causa disso, no ano seguinte, o Corinthians chamou-me para dez dias à experiência e fiquei. Oito golos no primeiro treino bastaram para isso.

E como era o seu o dia-a-dia nessa altura?

A minha rotina era muito puxada. Eu ia à escola de manhã, depois saía perto da hora de almoço e apanhava dois autocarros para ir trabalhar no talho do meu pai. Por volta das 18.30 já estava de saída para apanhar mais dois autocarros, o metro e chegar ao treino às 20.30. Trabalhei com o meu pai a partir dos 6 anos, e só aos 18 é que ele me deixou seguir uma carreira do futsal, quando eu já ganhava o meu dinheiro no Corinthians.

Quando é que percebeu que tinha um dom, isto é, algo de diferente dos outros com quem jogava?

Quando estava nos sub-16 do Corinthians era o melhor marcador do campeonato, com 70 golos, e o jogador atrás de mim teria cerca de 30. Aí eu percebi que era diferente, fazia tudo o que já gostava de fazer e ainda marcava golos. Eu percebi que tinha um nível acima, tanto que o Corinthians, quando estava perto de completar 18 anos, pôs-me a treinar e a jogar na equipa principal.

A magia do seu futsal gerava admiração ou criava-lhe problemas?

No início trazia-me problemas. Eu jogava na periferia de São Paulo, lá nas favelas onde a claque adversária aparecia armada. Lembro-me que driblava, fazia túneis, e os adversários gritavam que me iam matar, mas isso nunca me assustou. A minha personalidade foi fundamental. O grande segredo, e algo que eu sempre disse ao Ricardinho, é seres fiel ao teu estilo de jogo. Mesmo que estivesse a perder, eu driblava e depois ia lá à frente e virava o jogo. Desde pequeno que sempre gostei de jogos decisivos. Fui fazendo as minhas jogadas, ganhando títulos, marcando golos importantes, e a consequência disso foi ganhar o respeito de todos.

Nesse tempo não havia internet, onde é que o Falcão se inspirava?

Nunca tive um espelho, era uma coisa muito própria. Eu era desligado, não tinha referências. A minha preocupação era ter a bola e fintar. Se a bola subisse fazia uma bicicleta, se o adversário abrisse as pernas, eu fazia um túnel. Isso tanto poderia acontecer numa "peladinha" de rua ou na final do Mundial. Quebrei os paradigmas e trouxe a alegria para o futsal. Depois o Ricardinho acabou por se espelhar em mim e, mais tarde, alguém irá fazer o mesmo com ele. Tanto é que a importância do futsal era uma quando comecei e agora é outra.

Aos 41 anos, o Falcão ainda tem essa alegria de jogar de que fala?

Não, essa alegria caiu bastante. Nos últimos três anos, estou mais pela seleção, pelo desporto e pelos patrocinadores. Isso é bom para eles, mas não para mim. Eu tenho uma vida puxada, com vários compromissos comerciais. São mais de dez as empresas que me patrocinam. A minha imagem dá um bom retorno para eles, mas no contrato está lá um xis número de visitas e eventos que eu tenho de cumprir. Quando eu faço isso, não estou a treinar. Por exemplo, a equipa joga na quinta à noite, e na sexta-feira eles vão dormir até tarde. Eu não. Às seis da manhã estou a sair de casa para mais um evento. Nem que eu tivesse 25 anos, ia conseguir assim jogar ao mais alto nível. As prioridades mudam, deixo de treinar tanto e quando jogo estou sempre atrás dos outros. Mesmo assim tenho de jogar por causa dos patrocínios da equipa, e acabo por me expor negativamente. Vou jogar cansado, e o fazer força para jogar tem tirado a minha alegria.

E no meio disso tudo, como é que é ser esse Falcão, a pessoa que tem de ter sempre um sorriso na cara?

Eu gosto do carinho das pessoas, mas para isso é preciso eu estar feliz. Quando vou fazer um evento, podem estar mais de duas mil pessoas à tua espera. Eu aprendi que o número dois mil não pode pagar porque eu estou cansado de ter estado com as 1999 anteriores. Tenho de estar com o mesmo sorriso. Tudo para mim faz parte, mas é difícil ser o Falcão. Do que não gosto é sentir que estou a ser forçado a jogar. Estou num conflito muito grande porque claramente já não tenho essa alegria. Continuar a jogar é bom para todo o mundo, menos para mim.

O que é que mudou entre o futsal que encontrou quando começou a jogar e o de hoje?

De 2000 a 2012 havia jogadores muito bons. Eu joguei contra e com os melhores, mas depois a qualidade caiu. Antigamente os jogadores resolviam os jogos no um para um, no drible, sem descurar a parte tática. Hoje, nas camadas jovens, se uma equipa estiver a perder, o treinador coloca uma criança com 10 anos a jogar como guarda-redes avançado. Se ganhar, ganhou; se perder, justifica-se que fez tudo para o conseguir só porque colocou o guarda-redes avançado. Antigamente estimulava-se o drible e a consequência era o golo. Esta nova geração tem bons jogadores, mas não de exceção. Há bons jogadores e depois há o Ricardinho. Hoje, as equipas jogam para não sofrer golos e ficar com a bola, mas não para marcar. Está feio, está chato.

Vejo no seu discurso uma certa desilusão pelo caminho que o futsal está a levar...

Totalmente desiludido. O futsal não vai conseguir ser atrativo como foi nos últimos anos. Você já não se senta e vê um bom espetáculo.

Aborrece-se a ver futsal?

Aborreço-me. No Brasil há treinadores que pedem aos jogadores para passar e correr para o lado e o foco é não sofrer golos. Se der para marcar, melhor, mas se não der, tudo bem na mesma. Nós perdemos alguns pontos no ano passado em jogos que terminavam 0-0, ninguém arrisca.

No meio deste seu desencanto, como é que vê o seu futuro?

Eu tenho uma estratégia montada para os próximos três, quatro anos. Tenho muitos pedidos de eventos no Brasil e fora do país. Se tudo der certo, vou ganhar mais do que ganho agora a jogar. Por exemplo, o Brasil é muito grande, e se eu for fazer eventos em ginásios pelo país a fora, posso fazer isso durante 20 anos e mesmo assim muitos vão ficar de fora. Já tenho ginásios com uma lotação acima de cinco mil pessoas identificadas por pessoas que trabalham comigo. Irei fazer uma média de três eventos por mês, com a minha organização, a minha bilheteira e o meu patrocinador. Além disso, vou passar a ser youtuber. O meu canal será composto por desafios, entrevistas a outros jogadores, entre outras coisas. O meu planeamento está bem feito e jogar atrapalha tudo isso.

Com esse fim de carreira tão perto, já pensou como é que gostaria de ser recordado?

Eu gostaria de ser recordado como um jogador que mudou o futsal, que revolucionou a forma de se jogar, trazendo uma maior visibilidade a este desporto. Podemos ganhar ou perder, mas a paixão pelo que se faz tem de falar sempre mais alto. A minha história está escrita e a minha maior vitória foi ter ganho o respeito do mundo.

"Hoje, o único que faz a diferença é o Ricardinho"


É constantemente comparado ao Ricardinho. Como é que encara estas comparações?

Isso faz parte. Os treinadores que acompanharam a minha trajetória têm uma opinião, mas se for perguntar aos mais jovens a opinião será outra. Se me comparar hoje com o Ricardinho, nem há como ter dúvidas. Ele está no alto nível, a competir e com alegria de jogar. Eu já há três/quatro anos que não a tenho. O Ricardinho está com 33 anos? Tem de se comparar com o que eu fazia quando tinha essa idade. Ele começou a aparecer talvez com 25 anos, e eu contava há pouco uma história de quando eu tinha 21 anos e o Brasil ganhou à Itália com três golos meus. Tenho mais de três mil golos na minha carreira, e só na seleção brasileira marquei 396. É mais difícil jogar pelo Brasil, onde estão muitos dos melhores jogadores, e marcar golos jogando 18 a 20 minutos por encontro, ao invés de 35.

Não queria ir tanto por aí. Essas comparações interferem na vossa relação de amizade?

De forma alguma. Eu digo várias vezes que ele hoje é o melhor. Para mim, cada jogada mágica que ele faz é como se fosse uma homenagem ao meu futsal. O importante não são as comparações, mas sim o quão bem nós fizemos ao futsal.

Esteve atento ao último Europeu de futsal em que Portugal saiu vencedor?

O Europeu vai ao encontro do que nós falámos: força física e competição. Antes havia qualidade técnica e hoje não, o único que faz a diferença é o Ricardinho. Portugal conseguiu equilibrar com as grandes seleções, e depois tem um jogador que é diferente. A seleção portuguesa foi crescendo e num dia bom conseguiu ganhar à Espanha. A parte física equilibra muito as equipas. O Mundial 2016 na Colômbia mostrou isso. A Argentina foi campeã do mundo sem ter uma "estrela". Cheguei a dizer ao Ricardinho que Portugal (4.º classificado) perdeu na Colômbia a grande oportunidade de ser campeão do mundo. Sem o Brasil e a Espanha como semifinalistas, o campeonato estava na mão de Portugal.

Arrepende-se de nunca ter saído do Brasil e, por exemplo, jogar na Europa?

Nem um pouco. Não deixei de ser decisivo em Mundiais entre os melhores, não deixei de ser campeão do mundo (2008 e 2012). Os números falam por mim: sou o maior marcador da história dos mundiais com 48 golos. Convites foram muitos, mas eu tinha um contrato com as duas maiores empresas estatais: o Banco do Brasil e os Correios. Havia uma cláusula que fazia que o contrato ficasse sem efeito, caso saísse do Brasil. Se juntasse o que eu ganhava no Brasil com qualquer proposta que me chegasse de fora, não compensaria. E pesou também a questão da seleção. No futebol, um jogador sai para o Barcelona e a sua visibilidade aumenta, no futsal se um jogador vai para fora, deixa de ser visto. E o calendário diz que um jogador só é convocado para a seleção do Brasil se for em data FIFA. O facto de estar sempre na seleção fez que fosse ganhando notoriedade no Brasil. E aqueles que dizem que o futsal brasileiro não é tão forte taticamente, eu respondo sempre: "Venham cá jogar."

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