Equador. A mão de Rockefeller

Mala de viagem (56). Um retrato muito pessoal do Equador.
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Quito é a segunda capital mais alta do mundo, apenas superada por La Paz, na Bolívia. Num dos pontos mais altos, reencontrei-me com a obra do pintor Oswaldo Guayasamín, que a espalhou pela América e pela Europa. Também ali estavam as suas coleções de arte (arte pré-colombiana, arte colonial e arte contemporânea do Equador e objetos de todo o mundo). Guayasamín foi um dos pintores mais importantes do século XX. A sua obra é expressionista e capta a realidade dos povos indígenas da América Latina, que sofreram de opressão. Antes, eu conhecera de perto a sua obra na Zona Colonial de Santo Domingo, na República Dominicana, quando lá vivi e fui frequentador da Casa da Fundação Guayasamín. A Fundação foi criada em 1991 e recebeu as suas obras e coleções. Foram depositadas na Casa-Museu, localizada no morro Bellavista, em Quito, onde o artista viveu os seus últimos anos. Trata-se de um retiro físico e espiritual, por onde passaram políticos, cantautores e artistas de todas as áreas e de todo mundo. O espaço museológico ainda foi fundado pelo patrono, mas este faleceria, em 1999, nos Estados Unidos da América. Há telas de grandes dimensões e uma frase pungente: "Yo lloré porque no tenía zapatos hasta que ví un niño que no tenía pies." Profundamente humanista, o pintor foi o mais fiel retratista dos sentimentos do seu povo, através de rostos e corpos anónimos e de uma pintura intensa. O seu percurso passou, desde jovem, por pintar pedaços de papelão, que vendia aos turistas para pagar os estudos, até cativar o capitalista norte-americano Nelson Rockefeller, que comprou várias pinturas e o apoiou a partir dessa circunstância. Depois, o pintor teve como mestres os mexicanos José Orozco e Diego Rivera, porque de ambos aprendeu a técnica de pintar murais. Numa viagem do México à Patagónia, pintou 103 telas, a cujo conjunto chamou "Huacayñan", que em quíchua significa "O Caminho do Choro", explorando a temática dos negros, indianos e mestiços. Dizia que "a forma de amar de um mestiço latino-americano é completamente diferente da de um índio ou da de um negro". Todo o seu trabalho começou a girar sobre a questão indígena, sobre a opressão e a violência de que esses povos foram vítimas. A Capela do Homem foi construída mais tarde, tendo sido concebida pelo artista como uma homenagem à humanidade, particularmente ao povo latino-americano, mas Guayasamín não assistiu à sua inauguração (2002). Ao entrar, parece que estamos bebendo aquilo que foi a motivação do artista para a sua temática predileta, num espaço sagrado, mas não de cariz religioso. O artista era ateu. O seu trabalho faz parte de uma corrente expressionista que pretende despertar emoções no observador. Uma pintura de dor e de toque no coração, para mostrar o que o homem faz contra o homem, através de rostos desfigurados e tristes, "Piel adentro, de la Inocencia a la Ternura", com cores vibrantes, e uma pintura mais terna, que se seguiu, cujo centro é uma homenagem à mãe de sangue e à Mãe-Terra. Neste sentido, Guayasamín pintou uma mensagem que despertou a consciência da humanidade e gerou o clamor da rebelião. Recorria, várias vezes, à imagem da maçaroca e da espiga de milho, como metáfora para uma sociedade agregada e una. Tal como a romã, digo eu. As cinzas do artista ficaram junto à sua árvore preferida na Casa-Museu. No dia da deposição das cinzas, houve um ritual maçónico em sua homenagem. Uma frase permanece na parede: "Mantengan encendida una luz que siempre voy a volver."

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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