Da ilha da Ascensão a velhos cruzeiros: Reino Unido procura destino para imigrantes ilegais
Nos primeiros nove meses do ano, mais de sete mil pessoas cruzaram ilegalmente o canal da Mancha de barco, duas mil só em setembro. Num mês foram mais do que em todo o ano passado.

Migrantes apanhados pelas autoridades a cruzar o canal da Mancha.
© Ben Stansall/AFP
Em 2019, a ministra do Interior britânica, Priti Patel, prometeu que a chegada de imigrantes ilegais de barco às costas do Reino Unido seria um "fenómeno infrequente". Contudo, segundo os dados recolhidos pela agência de notícias Press Association, foram registados desembarques em 100 dos 273 dias que já passaram do ano, a uma média de um a cada três dias. Desde janeiro, pelo menos sete mil pessoas conseguiram atravessar o canal da Mancha. Destes, quase dois mil fizeram a travessia em setembro - mais do que em todo o ano passado.
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O governo britânico está por isso à procura de uma solução para o problema. E não faltam ideias para tentar dissuadir os migrantes de tentarem chegar ao Reino Unido vindos de França, mesmo que isso implique enviá-los para milhares de quilómetros de distância.
As ilhas da Ascensão e de Santa Helena, territórios britânicos no Atlântico Sul que ficam a mais de sete mil quilómetros de distância do Reino Unido, terão sido estudados pelo governo de Boris Johnson como um dos possíveis locais para a construção de centros de detenção e processamento de imigrantes ilegais e requerentes de asilo.
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Ambas terão sido consideradas "implausíveis". Na ilha da Ascensão, por exemplo, há bases militares dos EUA e os norte-americanos teriam de dar o seu parecer, não sendo possível garantir o sucesso, enquanto na de Santa Helena - famosa por ter sido o local de exílio e de morte de Napoleão Bonaparte -, além dos custos elevados, é preciso ter em conta o que seria feito caso o governo local rejeitasse a ideia.
Países terceiros?
Mas não foram as únicas ideias em cima da mesa. Outra solução, segundo o The Guardian, pode passar por enviar os requerentes de asilo, cujo processo devia demorar no máximo seis meses mas se arrasta mais tempo devido ao elevado número de pedidos, para centros de detenção que seriam construídos em países terceiros. Moldávia, Marrocos ou Papua Nova Guiné estarão em estudo.
A ideia de centros de detenção fora do território é uma imitação do modelo australiano, que processa os requerentes de asilo que são apanhados fora das águas da Austrália (e em relação aos quais este país diz não ter obrigações) nestes espaços nas ilhas da Papua Nova Guiné e Nauru, no Pacífico. Centros que custam quase oito mil milhões de euros por ano e que são alvo de críticas das organizações de direitos humanos.
De acordo com os documentos marcados como "oficial" e "sensível", os planos britânicos iriam contudo mais longe, já que envolveriam reenviar para os centros os requerentes de asilo que chegaram ao Reino Unido. Os países citados terão sido sugeridos pelo próprio gabinete do primeiro-ministro, com o jornal a indicar que há mesmo um documento a dizer que a opção veio do próprio Boris Johnson.
Um porta-voz do primeiro-ministro confirmou aos media britânicos que estão a ser estudados planos para que o Reino Unido possa "continuar a providenciar proteção para os que precisam e ao mesmo tempo prevenir o abuso do sistema e a criminalidade que, como temos visto com o aumento das travessias do canal facilitadas por gangues, é um problema". Há migrantes que pagam milhares de euros aos traficantes. E disse ainda que, "como parte desse trabalho, temos estado a estudar o que uma série de outros países fazem para preparar um plano para o Reino Unido".
Mas a opção por países terceiros, que já terá sido pensada por Tony Blair no início do século (na altura considerou a Tanzânia), também não está isenta de problemas. Em relação a Marrocos, os documentos do Ministério dos Negócios Estrangeiros indicam que seria "altamente improvável" que qualquer país do norte de África aceitasse e que os marroquinos não têm os meios para ter um centro de processamento de requerentes de asilo.
Já sobre a Moldávia, os responsáveis alertaram para o conflito com a região separatista da Transnístria e para a corrupção. "Se um centro de asilo depender da cooperação confiável e transparente do sistema de justiça do país anfitrião, não poderíamos contar com isso", cita o The Guardian. No caso da Papua Nova Guiné, o problema seria a distância e os custos.
Ferries ou plataformas petrolíferas?
De acordo com documentos a que o jornal The Times teve acesso, além das remotas ilhas no Atlântico Sul e países terceiros, em cima da mesa está também a hipótese de usar antigos navios de cruzeiro ou ferries que já não estão em utilização. Estes seriam ancorados em alto-mar, tendo o recurso a antigas plataformas petrolíferas no mar do Norte sido para já afastada.
Outra ideia que terá sido lançada numa reunião (num brainstorm) seria construir um centro de processamento numa pequena ilha escocesa, algo que a chefe do governo da Escócia, Nicola Sturgeon, já deixou claro que não apoiará. "Podem ter a certeza de que qualquer proposta para tratar seres humanos como gado num curral encontrará a mais forte oposição da minha parte", escreveu no Twitter.
Também a oposição critica as propostas de Boris Johnson. O ministro-sombra do Interior, Nick Thomas-Symonds, disse que o Partido Trabalhista iria opor-se a qualquer esquema para usar ferries. "Até mesmo considerar isto é terrível", disse, citado pela BBC, acusando o governo de "saltar de uma ideia desumana e pouco prática para outra" e alegou ter "perdido o controlo e todo o sentido de compaixão".
Vedações flutuantes?
Finalmente, de acordo com o The Financial Times (que primeiro tinha divulgado a hipótese das ilhas de Ascensão e de Santa Helena), o governo britânico terá questionado a indústria marítima sobre a hipótese de construir "vedações flutuantes" no canal da Mancha, que é uma das rotas marítimas mais movimentadas do mundo.
Segundo o The Guardian, o governo também já testou a tática do "bloqueio", na qual os barcos com os migrantes são fisicamente impedidos de entrar em águas britânicas.
A ministra do Interior deverá falar do tema num discurso durante a conferência do Partido Conservador, neste domingo. Priti Patel já nomeou um antigo membro da Marinha, Dan O'Mahoney, para o papel de "comandante da ameaça clandestina no canal".
Para requerer asilo no Reino Unido, os migrantes têm de provar que não podem regressar ao seu país por medo de perseguição. Enquanto esperam pela decisão, normalmente não podem trabalhar, tendo direito a alojamento temporário, transporte e apoio monetário. Por causa do recente aumento do número de chegadas e da pandemia de covid-19, os requerentes de asilo têm sido alojados em hotéis para permitir o distanciamento social.
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