Soará paradoxal, estou certo, mas, quando começou a desenhar-se a "polémica Mapplethorpe", que envolve Serralves e a exposição do fotógrafo norte-americano, acabei por lembrar-me de uma expressão com raízes na agricultura e na meteorologia: "Sol na eira e chuva no nabal." Significa um desejo, tantas vezes irrealizável, de juntar o melhor de dois mundos, descurando as incompatibilidades, naturais ou não, que não permitem qualquer hipótese de conciliação. Percebe-se que, dentro da sua política cultural, uma casa como Serralves precise, pelo menos de vez em quando, de momentos de notoriedade junto de um público mais alargado do que os habituais frequentadores - e Mapplethorpe vale, nesse domínio, como um ás de trunfo. A questão é que essa não é a única bagagem que a obra de Robert Mapplethorpe (1946-1989) carrega atrás de si, desde sempre. A controvérsia vem desde o tempo em que, à boa maneira norte-americana, se pôs em causa que uma abordagem fotográfica tão "explícita" (sigamos as convenções...) tivesse beneficiado de dinheiros públicos e fosse apresentada sem "véus". Em Washington, a exposição custou o posto profissional a Janet Kordan, curadora sob contrato com o Institute of Contemporary Art. Parece familiar, esta história? Por lá, foi muito mais longe: a polémica chegou ao Congresso..Acontece que tudo isto sucedeu em 1989 - é só fazer as contas... Quase três décadas depois, "houve aqui alguém que se enganou", como arrisca a canção de José Mário Branco. E, no entanto, a informação sobre Mapplethorpe, sobre "as suas circunstâncias" e consequências, é abundante e transparente. Por todas, poder-se-ia ter recomendado a leitura do juvenil e comovente Just Kids (em Portugal: Apenas Miúdos, ed. Quetzal), em que Patti Smith retrata os anos de convivência nova-iorquina de ambos, antes de alcançarem, ambos, o reconhecimento. Já nessa fase, o fotógrafo - e artista plástico - não faz questão de disfarçar o seu gosto pelo estatuto de agent provocateur que, depois, cada um interpretará como entender, pela via da teimosa vanguarda artística ou recorrendo a uma desforra psicológica para a insegurança. Ou ambas....Instalou-se a trapalhada: depois de anunciada a acessibilidade sem restrições, veio o "quarto escuro", interdito a menores de 18 anos. Seguiu-se a demissão do diretor e curador (até ao momento em que escrevo), sem explicações. E, por fim, entregou-se a responsabilidade a pais ou tutores - a ser indispensável, algo que merece um debate para memória futura, talvez pudesse ter-se começado por aí. A exposição de Mapplethorpe está onde deve: num espaço museológico, não nas ruas ou na capa de jornais. Insisto na ideia de que a informação - e, com inteira sinceridade, não conheço muitos frequentadores de exposições que sejam menores de idade e que optem pela condição de "solitários"... - seria a melhor forma para evitar a "proibição". Quem antecipasse o choque, legítimo, diante de algumas das fotografias exibidas, seguiria outro caminho ou ficaria em casa..Resta esperar que este triste episódio não tenha repetições ou sequelas. Por outras palavras, que tenha sido apenas um caso de aselhice e não o espelho de uma tendência, infelizmente em expansão, para nos fornecer, mesmo contra a nossa vontade, palas para os olhos. Quanto ao confronto entre risco, aventura, delírio, provocação e a "moral dominante", hoje já podemos pensar na perda que teria implicado a vitória desta última diante da edição de Ulisses, de James Joyce. Ou de alguns filmes de Pasolini, Fassbinder e Lars von Trier. Ou das canções mais "fortes" do catalão Albert Pla. A lista não acaba. E está sempre aberta à discussão - partindo do princípio de que só se discute aquilo que existe e que, de preferência, se conhece.
Soará paradoxal, estou certo, mas, quando começou a desenhar-se a "polémica Mapplethorpe", que envolve Serralves e a exposição do fotógrafo norte-americano, acabei por lembrar-me de uma expressão com raízes na agricultura e na meteorologia: "Sol na eira e chuva no nabal." Significa um desejo, tantas vezes irrealizável, de juntar o melhor de dois mundos, descurando as incompatibilidades, naturais ou não, que não permitem qualquer hipótese de conciliação. Percebe-se que, dentro da sua política cultural, uma casa como Serralves precise, pelo menos de vez em quando, de momentos de notoriedade junto de um público mais alargado do que os habituais frequentadores - e Mapplethorpe vale, nesse domínio, como um ás de trunfo. A questão é que essa não é a única bagagem que a obra de Robert Mapplethorpe (1946-1989) carrega atrás de si, desde sempre. A controvérsia vem desde o tempo em que, à boa maneira norte-americana, se pôs em causa que uma abordagem fotográfica tão "explícita" (sigamos as convenções...) tivesse beneficiado de dinheiros públicos e fosse apresentada sem "véus". Em Washington, a exposição custou o posto profissional a Janet Kordan, curadora sob contrato com o Institute of Contemporary Art. Parece familiar, esta história? Por lá, foi muito mais longe: a polémica chegou ao Congresso..Acontece que tudo isto sucedeu em 1989 - é só fazer as contas... Quase três décadas depois, "houve aqui alguém que se enganou", como arrisca a canção de José Mário Branco. E, no entanto, a informação sobre Mapplethorpe, sobre "as suas circunstâncias" e consequências, é abundante e transparente. Por todas, poder-se-ia ter recomendado a leitura do juvenil e comovente Just Kids (em Portugal: Apenas Miúdos, ed. Quetzal), em que Patti Smith retrata os anos de convivência nova-iorquina de ambos, antes de alcançarem, ambos, o reconhecimento. Já nessa fase, o fotógrafo - e artista plástico - não faz questão de disfarçar o seu gosto pelo estatuto de agent provocateur que, depois, cada um interpretará como entender, pela via da teimosa vanguarda artística ou recorrendo a uma desforra psicológica para a insegurança. Ou ambas....Instalou-se a trapalhada: depois de anunciada a acessibilidade sem restrições, veio o "quarto escuro", interdito a menores de 18 anos. Seguiu-se a demissão do diretor e curador (até ao momento em que escrevo), sem explicações. E, por fim, entregou-se a responsabilidade a pais ou tutores - a ser indispensável, algo que merece um debate para memória futura, talvez pudesse ter-se começado por aí. A exposição de Mapplethorpe está onde deve: num espaço museológico, não nas ruas ou na capa de jornais. Insisto na ideia de que a informação - e, com inteira sinceridade, não conheço muitos frequentadores de exposições que sejam menores de idade e que optem pela condição de "solitários"... - seria a melhor forma para evitar a "proibição". Quem antecipasse o choque, legítimo, diante de algumas das fotografias exibidas, seguiria outro caminho ou ficaria em casa..Resta esperar que este triste episódio não tenha repetições ou sequelas. Por outras palavras, que tenha sido apenas um caso de aselhice e não o espelho de uma tendência, infelizmente em expansão, para nos fornecer, mesmo contra a nossa vontade, palas para os olhos. Quanto ao confronto entre risco, aventura, delírio, provocação e a "moral dominante", hoje já podemos pensar na perda que teria implicado a vitória desta última diante da edição de Ulisses, de James Joyce. Ou de alguns filmes de Pasolini, Fassbinder e Lars von Trier. Ou das canções mais "fortes" do catalão Albert Pla. A lista não acaba. E está sempre aberta à discussão - partindo do princípio de que só se discute aquilo que existe e que, de preferência, se conhece.