"Todas as manhãs agradecemos a Deus por estar aqui a viver com os judeus"

Jornalista palestiniano da Cisjordânia, cidadão israelita residente em Haifa, Khaled Abu Toameh fala sem limites do que é viver num país em guerra com o seu povo. Israel é a sua casa e não há outro lugar onde se sinta mais "confortável".
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Khaled Abu Toameh apresenta-se como "jornalista palestiniano". É muçulmano, filho de uma palestiniana da Cisjordânia e de um árabe israelita. É cidadão israelita, faz parte dos dois milhões de árabes que vivem em Israel (cerca de 22% da população). Escreve para vários jornais daquele país, como o The Jerusalem Post, e é produtor televisivo na NBC há quase 27 anos a cobrir o conflito israelo-árabe, com o foco na questão palestiniana - Cisjordânia e Gaza. Numa conversa com um grupo de jornalistas europeus, não houve lugar para politicamente corretos. "Esta é a minha casa. Não há outro lugar onde queira estar", assinala, sobre Israel. Não poupa críticas ferozes à Autoridade Palestiniana, que governa a Cisjordânia, ao Hamas, que comanda Gaza, e aos dirigentes árabes em Israel. Ao governo do seu país deixa um apelo: "Respeitem-me."

Khaled é árabe, israelita, palestiniano, muçulmano...
É um pouco confuso, sim. Há aqui alguma crise de identidade [risos]. O importante é que sou um cidadão israelita que pertence à comunidade árabe. Somos dois milhões de cidadãos e representamos 22% da população. Às vezes também somos chamados palestinianos. Mas podem chamar-me o que quiserem: israelita, árabe, palestiniano, muçulmano... pela ordem que quiserem. Quando era estudante trabalhava com a OLP, embora nunca tivesse sido militante. Mas quando terminei o curso, na Universidade Hebraica de Jerusalém, felizmente para mim e infelizmente para muitas pessoas, a primeira Intifada começou e os jornalistas estrangeiros precisavam de quem os levasse à Cisjordânia e a Gaza. Como falava várias línguas, acabei por ser um guia turístico.

Sente-se em casa em Israel?
Estou em casa.

Não se sente por vezes numa espécie de contradição interior, sendo um palestiniano israelita?
A única questão é que o meu Estado está em conflito com o meu povo. Nós, os árabes israelitas, somos apanhados no meio. Mas sabemos o que queremos. Tal como a maioria dos judeus, queremos a separação. Queremos um Estado Palestiniano. Quanto a nós, queremos continuar dentro de Israel. Por duas razões: primeiro porque é a minha casa. Nem Gaza nem Ramallah são a minha casa; segundo porque me sinto muito mais confortável em Israel do que naqueles sítios. Sinto-me mesmo mais confortável aqui. No dia em que vir democracia, liberdade de expressão, garanto-vos que vou viver em Ramallah. Mas agora não é encorajador o que se passa ali.

Qual é a situação da comunidade em que se integra?
Essa é a questão que mais me preocupa neste momento. Há muita tensão entre árabes e judeus dentro de Israel. Os árabes israelitas têm sido deslegitimados, acusados de ser traidores, inimigos... E não somos. Somos cidadãos de Israel. Nas últimas duas eleições vimos como os principais partidos estavam a atacar a comunidade árabe, principalmente o partido do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. As sondagens dizem que a maioria dos árabes israelitas querem a integração em Israel. E eu estou de acordo. Nasci aqui, vivo aqui. Na Cisjordânia, as pessoas querem a separação. Nós os árabes israelitas queremos a integração.

E quais são as reivindicações?
As únicas reivindicações são emprego, financiamento público e infraestruturas. Empregos, porque somos 22% da população, mas temos menos de 8% de representatividade no setor público. Também nos são negados muitos trabalhos porque não cumprimos o serviço militar. Mas eu não escolhi não servir nas Forças Armadas. O governo não permite. Não podem impedir e depois usar esse pretexto para não me deixar ter determinados empregos. Infraestruturas: experimente visitar Jerusalém oriental e veja o estado em que vivem as pessoas. E pagam impostos. Financiamento público: basta consultar as estatísticas oficiais para ver que os árabes não recebem o suficiente. Não é bom para Israel, não é. E junto respeito a isto. Quero que me respeitem. Não me apontem como inimigo e parem de me julgar pela minha religião. Muitos judeus pensam que se não se for judeu não se pode ser leal a Israel. Isso não é verdade. Posso trazer a esta sala muitos árabes que sacrificaram já mais as suas vidas por Israel. Mas sinto muita tensão. É tempo para a elite israelita acordar e acolher os árabes em vez de os empurrar contra a parede. É preciso pararem de nos chamar inimigos. Não somos inimigos. No final do dia estou feliz por estar aqui, assim como a maioria dos árabes. Não quero ir para lado nenhum. Todas as manhãs agradecemos a Deus por estar aqui em Israel a viver com os judeus. Mas quero ver o meu Estado respeitar-me mais. Envolver-me mais.

Acha que os árabes israelitas e os judeus podem unir-se no governo?
Os árabes desejam que sim. Pessoalmente não sou otimista. Benny Gantz (líder da coligação Azul e Branca, que está neste momento a tentar formar governo) antes das eleições deixou bem claro que não queria sentar-se com árabes. Não acho que vá haver uma mudança significativa. Também não gosto de alguns dos deputados árabes que estão no Knesset (Parlamento). Alguns deles prejudicaram-me, como árabe, bastante. Mas se Benjamin Netanyahu tivesse mantido a boca fechada, não atacando a nossa comunidade, mais de metade da população árabe não tinha votado.

Que avaliação faz dos partidos árabes em Israel?
Eles têm de começar a representar os árabes israelitas que votaram neles e não os palestinianos da Cisjordânia ou de Gaza. Gostava de que se preocupassem mais com os problemas da nossa comunidade árabe. Não me ajuda nada se o meu representante no Knesset for numa flotilha para Gaza... Até me prejudica. Como já disse, alguns dos deputados árabes têm causado grandes estragos à nossa comunidade, por causa da sua retórica e ações. Mas agora parecem estar a ser mais cautelosos. No lugar de Israel, se quisesse neutralizar estas pessoas, envolvê-las-ia. Nomeiem-nas para empregos, levem-nas para o governo, por exemplo para o Ministério da Saúde. Tenho falado com muitos judeus que pensam que pode ser uma boa ideia integrá-los mais. Há pobreza e desemprego nesta comunidade que são resultado de anos de negligência do establishment israelita. Não podem deixar os árabes israelitas numa zona cinzenta sem saber se realmente pertencemos ou não a Israel. Manter-nos numa zona cinzenta abre espaço para o movimento islâmico radical capturar a comunidade árabe em Israel. A melhor maneira de sabotar estes líderes radicais é envolver os cidadãos árabes.

Podemos comparar a atitude em Israel do governo em relação à comunidade árabe com o que se passa nos EUA em relação aos africanos, por exemplo?
Por acaso, tenho estado com alguns americanos que vêm a Israel e, quando lhes falo nos problemas da comunidade árabe, eles falam nos afrodescendentes nos EUA. Aqui ninguém faz essa comparação. Israel não é um país racista nem um país de apartheid. Costumo dizer que os judeus estão com medo e quando isso acontece não veem a diferença entre um cidadão árabe israelita e um palestiniano bombista suicida de Gaza. Que não passam de um grupo que apenas quer destruir Israel. Por causa do conflito entre Israel e o mundo árabe, eu pago o preço. E sou um cidadão pleno. Não acordo todas as manhãs e digo a minha tikva (oração judaica) mas isso não me torna menos leal ao Estado. Gostava de assistir a um diálogo sério entre judeus e árabes dentro de Israel. Gostava de ver um ponto final nesta campanha para deslegitimar a comunidade árabe dentro de Israel. Até me envergonho em frente às minhas filhas. Elas andam em escolas judaicas, estudaram nas universidades de Israel, estão totalmente integradas, uma delas trabalha no Ministério da Justiça. Cada vez que ouvem esse tipo de discurso ficam com a mensagem errada, ficam confusas. O meu antigo ministro da Defesa pensa que eu sou um inimigo dentro de Israel. Isto é um problema muito sério. Se não se resolver, vai haver uma revolta dentro de Israel e haverá uma Intifada nas ruas de Jafa ou Haifa. Não é tarde de mais. A maioria de nós ainda é leal ao país.

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