A ilusão do Brexit
Pode um primeiro-ministro vencer umas eleições antecipadas depois de perder nove importantes votações seguidas no Parlamento, batendo Blair e Brown em 13 anos de poder? Pode um primeiro-ministro, sobre quem já nos perdemos na contagem às suas mentiras públicas, estar à beira de uma maioria absoluta? Pode um primeiro-ministro, que é líder de um partido que assistiu ao maior número de deserções de deputados de que há memória, conseguir unir as fações internas a tempo de derrotar toda a oposição? E pode um primeiro-ministro fazer uma campanha vitoriosa falando o menos possível do Brexit e o mais possível de um maciço programa de investimento público levado a cabo pela direita inglesa? A resposta a todos estes paradoxos e improbabilidades parece ser só uma: não só pode, como está à beira de acontecer.
Há pelo menos duas razões para tudo isto. A primeira é o estado das oposições. Desde o referendo de 2016 que liberais-democratas, nacionalistas escoceses e trabalhistas foram sempre muito mais claros sobre o que não queriam do que sobre o que queriam. As votações negativas nos Comuns formaram elos circunstanciais, mas qualquer caminho alternativo aos governos conservadores dividiam estratégias. Essa fragmentação tinha também tanto de ideológica, como de identitária, como de egocentrismo e nem a aparência de estarmos presentes de um ou dois momentos que poderiam reverter a agonia do Brexit tornou a frente unida ou simplesmente clarificadora. Só isto explica que uma primeira-ministra derrotada três vezes com estrondo nos Comuns consiga sobreviver. Só isto justifica que o Partido Conservador, minado por guerras internas, consiga não só sobreviver à erosão provocada pelo Brexit como ter hoje margem para se recompor e enfrentar uma eleição com hipóteses de chegar à maioria. Se Johnson tem hoje mais condições para recuperar a maioria nos Comuns muito deve à gestão política das oposições.
A segunda razão é o mérito de Boris Johnson. Não vou copiar o original e também eu dar um mortal à retaguarda, depois de ter escrito tudo o escrevi sobre o político. Não se trata de elogiar o primeiro-ministro. Se quiserem, é apenas o reconhecimento de um resultado através de instrumentos muito dele. Reconhecer não significa valorizar. O resultado chama-se maior unidade do Partido Conservador, fim que lhe dá o oxigénio necessário para ir a eleições com confiança na vitória. Só que esse fim foi à custa de mais um chorrilho de mentiras e de incumprimentos de promessas que parece já não animar ou desiludir uma alma conservadora. O que importou - e Boris Johnson soube perfeitamente jogar com isso - foi criar a ilusão de que o Brexit está para acontecer, numa primeira fase vendido sem acordo e de forma apocalíptica (do agrado de uns), noutra como resultado da arte negocial do primeiro-ministro perante 27 chefes de Estado e de governo, forjando uma saída menos crítica, mais ordenada, mas não inteiramente soft (do agrado de outros). Por outras palavras, Bruxelas deu ao senhor Johnson as condições para fechar os apoios necessários nos Comuns, agrupando a bancada conservadora, trazendo de volta os dissidentes e ainda cativando uma vintena de trabalhistas. A exaustão processual jogou a favor do primeiro-ministro.
A questão, porém, não se esgota nem nestas últimas semanas da política britânica, nem no quadro pré ou pós-eleitoral, nem mesmo a 31 de janeiro de 2020. O Brexit não está hoje mais definido porque Johnson parece ter encontrado uma maioria parlamentar que o apoia, muito menos ficará encerrado na nova data de saída. Desde logo porque ela não implica a saída total - os direitos e as responsabilidades na relação Reino Unido/UE permanecem intactos até finalizado o período de transição previsto (31 de dezembro 2020). Além disso, durante esses onze meses, as partes são supostas fechar um acordo de livre comércio que minimize os danos da saída, seja juridicamente estável e politicamente compatível. Nada garante que estas condições se verifiquem num tão curto espaço de tempo e que não haja necessidade de estender o período transitório, o qual também servirá para definir com mais detalhe os termos da relação futura. Mas, como o diabo está nos detalhes, é no entretanto que tudo pode fazer diluir o Brexit.
A começar pela operacionalização dos termos do acordo referente à Irlanda do Norte e à fronteira com a Irlanda. Uma coisa é o que está escrito, outra é a prática. É politicamente sustentável que um regime de exceção contemple a Irlanda do Norte e deixe de fora a Escócia, que votou maioritariamente pela manutenção na UE (62%)? Dificilmente. O impulso independentista escocês está a ganhar espaço no debate, há movimentações legislativas para autonomizar o processo em Edimburgo sem recurso a Westminster, e vão sendo apontados calendários para um novo referendo no segundo semestre de 2020. O unilateralismo escocês, em choque com o nacionalismo inglês, pode fazer rolar uma tentativa de Brexit que, na realidade, não existe. O que existe potencialmente é um caminho de tensão aberta entre um Scoxit e um Engxit. Na verdade, é a Inglaterra que está a querer sair da União Europeia e a Escócia que está a querer sair do Reino Unido. A piorar o cenário, podemos regressar em força ao debate sobre a reunificação irlandesa, o que não só deixaria um futuro governo liderado por Boris Johnson, hipoteticamente relegitimado nas urnas, com a missão não de sair rapidamente da UE, mas de lidar com umas ilhas britânicas a ferro e fogo. Se a União Europeia pensa que tudo isto não passaria de um problema interno do Reino Unido, engana-se: teria um Estado membro (Irlanda), um outro a querer sair (Reino Unido) e uma nação a querer entrar (Escócia) no epicentro do turbilhão.
É uma ilusão pensarmos que está hoje tudo mais clarificado e ordenado no Brexit. Ele pode não passar de uma ilusão e o pior pode estar ainda para acontecer.
Investigador universitário