Um pedaço de Bacon (2)

Francis Bacon regressou lá anos depois, quase no final da vida, sabendo que a cidade que conhecera não existia mais. Atravessou o Muro em direcção a leste (logo ele, que sempre teve inclinações de direita e horror ao comunismo), foi ao Pérgamo admirar a estatuária egípcia, na esteira de uma paixão antiga, nascida no Cairo. A viagem a Berlim, porém, só confirmou o pior pressentimento: estava velho e cansado, gasto, não era o mesmo.

Pouco se sabe sobre os dois meses que Bacon passou em Berlim no início de 1927, não muito depois de ter sido expulso de casa, após o pai o ter apanhado - dizem - vestido com a lingerie da mãe, a mirar-se ao espelho, vaidoso. O pintor dirá mais tarde que aquela foi uma temporada de pura luxúria e devassidão, e é facto que, na época, Berlim destacava-se como a capital de todos os vícios e perdições. Para mais, numa decisão bizarra, os pais autorizaram-no a partir na companhia de um amigo da família, Cecil Harcourt-Smith, filho de um arqueólogo famoso, que até há pouco dirigira o Victoria and Albert e antes guardara as antiguidades romanas e gregas do Museu Britânico.

Cecil era um sádico à maneira antiga, com uma voracidade sexual insaciável e cujo principal prazer consistia em infligir dor às suas vítimas, fossem elas mulheres ou homens. "He fucked anything that moved", recordará Francis mais tarde, sendo essa a principal lembrança de um tempo em que, hospedado no faustoso Hotel Adlon, constatou com perverso gozo a abissal diferença entre o luxo que o rodeava e a miséria que podia observar da janela do seu quarto. Toda a sua vida, aliás, será passada entre esses dois pólos extremos, o da opulência dos melhores restaurantes e dos grandes hotéis de Paris ou de Londres e o da atracção fatal pela fauna das zonas marginais do East End, onde recrutava os amantes mais dilectos e perenes (o último dos quais, John Edwards, nem sequer sabia ler e escrever, o que não o impediu de defender ferozmente a herança do pintor, que, segundo parece, investiu à larga em bordéis masculinos de Pattaya). O que ficava no meio, o conformismo burguês das classes médias, sempre lhe mereceu um desprezo visceral e profundo.

É óbvio que Bacon frequentou a vida nocturna de Berlim, cidade que tinha então mais de 170 bordéis masculinos, na estimativa porventura exagerada do poeta W. H. Auden, que a visitou em 1929. É menos certo que, à semelhança de Auden ou de Christopher Isherwood, tenha ido ao Instituto para o Estudo da Sexualidade, fundado em 1919 por Magnus Hirschfeld, figura muito admirada nos círculos homossexuais. Também não se sabe se Bacon, já então fascinado pela contemplação da carne fresca e de vísceras ensanguentadas, foi ver os grandes matadouros da zona leste de Berlim (mais tarde, será um frequentador assíduo dos abattoirs de Paris e do velho mercado de Les Halles). É provável, em todo o caso, que tenha visitado a exposição Neue Sachlichkeit (Nova Objectividade), acabada de inaugurar na Galeria Nierendorf, bem como a grande mostra dos trabalhos de Malevich, patente em Berlim ao longo de todo esse ano de 1927.

É também provável que tenha ido ao cinema ver Metropolis, a utopia futurista de Fritz Lang, e, sobretudo, O Couraçado Potemkine, que se estreara no ano anterior, após um longo período de censura. A cena do massacre da Escadaria Primorsky, em Odessa, em que centenas de civis indefesos são massacrados pelas tropas do czar, apesar de nunca ter existido na realidade, ao contrário do que o filme de Einstein faz crer (houve massacres à chegada do couraçado, mas nunca naquele local), teve uma influência decisiva, poderosíssima, na obra de Francis Bacon, tendo este dito que foi a força catalisadora que o fez tornar-se pintor. Ao longo da vida, verá o filme inúmeras vezes, e é provável que a primeira delas tenha sido em Berlim.

Além da mãe que grita, ao ver o filho pisado e esmagado pela turba espavorida, e de outra mãe alvejada, que larga o bebé no seu carrinho a cair pela escadaria abaixo, o plano mais marcante foi o da velha enfermeira de pince-nez, cujo olho é trespassado por uma bala dos cossacos. A sua boca, aberta de dor e espanto, surgirá pela primeira vez em Abstraction From the Human Form, trabalho de 1936 que, como aconteceu a tantos outros, o artista acabou por destruir, ressurgindo em Fragment of a Crucifixion, um óleo inacabado de 1950, na série Heads, de 1948-1949, e em dezenas de outras obras em que a cavidade bucal, repleta de dentes, adensa o tom ameaçador da composição para lá dos limites do suportável, não sendo ao acaso que a boca monstruosa do painel direito de Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion, de 1944, inspirou Ridley Scott e o desenhador H. R. Giger na criação de Alien.

Não seria esta, aliás, a única influência directa de Bacon no cinema: durante as filmagens de O Último Tango em Paris, Bernardo Bertolucci ficou de tal forma impressionado pela retrospectiva do pintor no Grand Palais que lá levou Marlon Brando, em demorada visita, para que este, na construção da sua personagem, atentasse nos rostos grotescos e ao mesmo tempo trágicos que povoam aquelas telas. No genérico do filme são mostrados alguns dos quadros de Bacon, e a fotografia, onde predominam os laranjas crepusculares nas cenas interiores e o cinzento pontuado pelos néons das montras nos exteriores, tem também a marca de uma pintura nascida no cinema e, ela própria, profundamente cinematográfica.

É sintomático que, nos sucessivos estúdios de Bacon, o último dos quais no n.º 7 de Reece Meadows, Londres (transferido após a sua morte e conservado intacto, no estado caótico original, na Hugh Lane Gallery, em Dublin), sempre tenham existido álbuns com as "fotografias em movimento" de Eadweard Muybridge, mostrando a dinâmica corporal das figuras humanas e animais, sendo essa uma das mais notórias - e, de resto, assumidas - influências na sua pintura. A outra terá sido a propaganda nazi, em especial as imagens aterradoras dos próceres do Reich, como Goering ou Goebbels, a discursarem às massas entontecidas.

Se Berlim teve o efeito de um detonador, Paris foi o lugar da formação e dos primeiros passos. Bacon foi para lá logo a seguir à sua meteórica passagem pela capital do Reich. Em França, por um acaso, tropeçaria numa senhora da alta sociedade, Yvonne Bocquentin, pianista amadora e grande conhecedora das belas-artes. O marido administrava diversas propriedades, entre as quais a do barão de Rothschild, com vasta floresta. Francis inicia então uma amitié amoureuse com Yvonne, que o considera un monsieur rare e o hospeda confortavelmente em sua casa, nas imediações de Chantilly. Será com ela que contemplará Le Massacre des Innocents, uma arrepiante tela pintada entre 1625-1632 por Nicolas Poussin, e exposta no Museu Condé, no chateâu de Chantilly. Também nesse quadro, e à semelhança da sequência famosa do filme de Einstein, vemos uma mãe que grita em desespero, perante o filho prestes a ser morto por um soldado. A boca da mulher abre-se num lancinante pranto de dor, grito que quase ouvimos, e o dramatismo do quadro é tanto maior se soubermos que, muito provavelmente, ele terá resultado de uma encomenda feita pelo marquês e banqueiro romano Vincenzo Giustiniani para evocar o rapto das crianças da sua própria família pelos otomanos, em 1564. Não admira, pois, que, além de Bacon, a tela de Poussin tenha influenciado decisivamente Picasso na concepção de Guernica, o qual, por sua vez, marcou também de forma profunda toda a obra do pintor britânico.

Segundo Bacon, a impressão causada por Le Massacre des Innocents, que visitou obsessivamente, foi maior do que qualquer outra, o que talvez seja um exagero, sobretudo se tivermos em conta a influência que, a todos os níveis, incluindo no da composição dos seus trípticos, exerceu sobre si o extraordinário Altar de Isenheim, que Nikolaus de Hagenauer esculpiu e Matthias Grünewald pintou entre 1512-1516 para o Mosteiro de Santo António, em Issenheim, famoso pelas suas curas para as vítimas da peste e, em particular, para as doenças da pele, ponto que não terá passado despercebido ao pintor britânico, que sempre teve uma atenção obsessiva, nas raias da hipocondria, por doenças e males do corpo e pelos avanços da medicina (durante anos, foi assinante e leitor assíduo da Lancet), algo que também deixou patente marca nas suas obras.

No final da vida, viajará até Colmar, na Alemanha, para admirar pela última vez o Altar de Isenheim na companhia do amigo da altura, José Capelo, um jovem banqueiro espanhol que fugia ao padrão dos seus amantes de classe baixa (e de cujo apartamento em Madrid serão furtadas, em 2015, quatro telas de Bacon, estimadas em 30 milhões de euros).

Em Paris, teve aulas de desenho e pintura, esparsas e poucas, mas em todo o caso as suficientes para desmentir o mito, que sempre alimentou, de que era uma autodidacta absoluto, cuja arte brotava de um instinto primitivo e selvagem, sem mediação alguma de mestres e doutrinas. Se tal imagem tem alguma correspondência com a realidade, se Bacon, por exemplo, pouco ou nada praticou o desenho, preferindo atirar-se sobre a tela virgem como um animal bravio, não é menos certo que existem inúmeras influências na sua pintura e marcas que o próprio artista não desdenhou.

Do surrealismo, desde logo, mas também de Picasso, sobretudo ele. Bacon ficará deslumbrado com a exposição dos seus desenhos na galeria do marchand Paul Rosenberg, na Rue La Boëtie, que visitou muito provavelmente na companhia ou a conselho de Yvonne Bocquentin. É também por essa altura, em finais dos anos de 1920, que assiste, deslumbrado, à exibição de Un Chien Andalou, fruto da delirante parceria de Buñuel e de Dalí, com o horripilante plano do olho de uma mulher a ser cortado ao meio por uma navalha de barbear (na realidade, era o olho de uma vaca...), e é também por essa altura que lê, nas páginas da revista Documents, fundada por Georges Bataille, textos de Einsentein acompanhados de imagens da boca escancarada de Potemkine e fotografias dos matadouros de Paris.

Regressa a Londres no final de 1928, com 19 anos acabados de fazer. Torna-se decorador de interiores, começa a publicar no The Times anúncios a oferecer-se como gentleman's companion. Em 1930, Pablo Picasso pinta Crucificação e, três anos depois, em simultâneo com a ascensão de Hitler ao poder, será a vez de Francis Bacon se entregar a esse tema em três óleos distintos, um dos quais destruirá mais tarde. Nunca os incluirá nas retrospectivas da sua obra, a qual, segundo ele, só começou verdadeiramente em 1944, com Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion, a pintura primordial.

Escolheu morrer num hospital de Madrid especializado no tratamento da asma, a doença que o perseguiu ao longo de toda a vida. No quarto 417 da Clínica Ruber, por cima da cama, um pequeno crucifixo de madeira assistiu aos últimos momentos. E, por sua vontade expressa, o funeral e a cremação foram o mais simples possível, sem cerimónia nem convidados.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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