As frases e imagens de Nelson Rodrigues eram devoradas pelos leitores e repetidas por eles no dia-a-dia.Em 1969, há exatamente 50 anos, Nelson Rodrigues escreveu, em sua coluna no jornal O Globo: "Em Brasília, todos são inocentes. E todos são cúmplices." Era uma frase intrigante porque, então, Brasília tinha apenas nove anos como capital do Brasil e, na verdade, nem o era ainda de facto - grande parte da máquina governamental, os ministérios, os tribunais de Justiça, a presidência dos bancos e, principalmente, o corpo diplomático, todos continuavam na velha capital, o Rio. Mas a corrupção - tratada com ironia por Nelson - já tinha enviado para Brasília seus praticantes..Nelson Rodrigues escrevia três crónicas por dia, todos os dias: duas no Globo, uma das quais sobre futebol, e outra também sobre futebol no Jornal dos Sports, que fora fundado por seu irmão Mario Filho. Fazia-o pelo dinheiro - era sua única fonte de renda estável, sendo o teatro uma fonte apenas ocasional. Para atender a esta absurda produção, Nelson se valia de uma galeria de imagens e expressões que ia inventando no decorrer do ano e passava a usar sempre que a ocasião permitia. Seus leitores adoravam isto - e passavam a repeti-las entre si, no dia-a-dia. Eis algumas:."O sol de derreter catedrais" era uma imagem para definir o Rio no verão. O "mau tempo de 5º ato do Rigoletto" queria dizer muita chuva. "Sentar no meio-fio e chorar lágrimas de esguicho" explica-se por si, sendo o meio-fio a maneira como os cariocas chamam a beirada do passeio. Quando um sujeito se irritava muito, Nelson dizia que ele "subira pelas paredes como uma lagartixa profissional". O próprio Nelson, com a quantidade de colunas diárias que tinha de escrever, dizia que trabalhava como um "remador de Ben-Hur" - lembra-se do filme? E havia o "débil mental de babar na gravata", a "vizinha gorda e patusca", o "fauno de tapete"..O brasileiro, segundo ele, era "um narciso às avessas", que "cuspia na própria imagem". As pessoas que o abordavam na rua, como se fossem velhos amigos, mas que ele nunca tinha visto, eram os seus "desconhecidos íntimos". Quando, naquela época, os padres brasileiros começaram a trocar a pregação religiosa pela doutrinação política, Nelson escreveu: "O Brasil ainda será o maior país ex-católico do mundo." Não sei se foi pelo motivo que ele apontou, mas, a continuar o inacreditável crescimento das seitas evangélicas e pentecostais dos últimos trinta anos no Brasil, sua profecia se realizará..Nelson dizia que "só os profetas enxergam o óbvio". E exemplificava com a história de seu amigo Otto Lara Resende, que, durante anos, passou de carro todos os dias em frente ao Pão de Açúcar e nunca o vira. Um dia, casualmente, Otto olhou pela janela e viu a monumental pedra na baía de Guanabara. Freou de repente na pista de alta velocidade, saiu alucinado do carro e, tendo palpitações, apontava para o Pão de Açúcar e exclamava: "De onde saiu? De onde saiu? Ontem não estava aqui!" As pessoas que pararam atrás dele tiveram de abaná-lo. E Nelson concluía: "Era o encontro triunfal do Otto com o óbvio. O óbvio ululante!".Nelson era um permanente apaixonado. Dizia que "todo amor é eterno; se não é eterno, não era amor" e que o segundo casamento era "o adultério com guaraná, salgadinhos e convidados". Mas ele próprio se casou, não uma nem duas, mas três vezes, sendo o terceiro casamento, de novo, com sua primeira mulher. O importante, para ele, era o amor: "O amoroso é sincero até quando mente." E outra: "O dinheiro compra até amor verdadeiro." Nelson, que não falava nem escrevia palavrões, acreditava: "Todas as palavras são lindas. Nós é que as corrompemos." Outra de suas obsessões era a nudez: "O biquíni é a nudez pior que a nudez." Mas, para ele, havia algo ainda mais condenável: "O rosto é a parte mais obscena do ser humano. Do pescoço para baixo, podíamos andar nus.".Nelson gostava dos loucos. Seus favoritos eram os sujeitos que pensavam ser Napoleão. E explicava: "O verdadeiro Napoleão é o Napoleão de hospício - porque não teve o seu Waterloo." Numa época, fins dos anos 60, em que os jovens estavam botando fogo nos costumes e se julgando donos do mundo, Nelson recusou-se a se juntar ao coro de velhos que tinham passado a adulá-los. "Os jovens têm todos os defeitos dos adultos e mais um - o da inexperiência", dizia. E aconselhava: "Jovens de todo o mundo, envelheçam!".Quanto à frase sobre Brasília, depois dos treze anos de inacreditável corrupção promovida pelos governos de Lula e Dilma, o de Bolsonaro, que acabou de se instalar prometendo ser o mais incorruptível de todos, já começa a ter falcatruas denunciadas. E, como os anteriores, também se diz inocente. Nelson tinha razão: todos são inocentes - e todos são cúmplices..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).
As frases e imagens de Nelson Rodrigues eram devoradas pelos leitores e repetidas por eles no dia-a-dia.Em 1969, há exatamente 50 anos, Nelson Rodrigues escreveu, em sua coluna no jornal O Globo: "Em Brasília, todos são inocentes. E todos são cúmplices." Era uma frase intrigante porque, então, Brasília tinha apenas nove anos como capital do Brasil e, na verdade, nem o era ainda de facto - grande parte da máquina governamental, os ministérios, os tribunais de Justiça, a presidência dos bancos e, principalmente, o corpo diplomático, todos continuavam na velha capital, o Rio. Mas a corrupção - tratada com ironia por Nelson - já tinha enviado para Brasília seus praticantes..Nelson Rodrigues escrevia três crónicas por dia, todos os dias: duas no Globo, uma das quais sobre futebol, e outra também sobre futebol no Jornal dos Sports, que fora fundado por seu irmão Mario Filho. Fazia-o pelo dinheiro - era sua única fonte de renda estável, sendo o teatro uma fonte apenas ocasional. Para atender a esta absurda produção, Nelson se valia de uma galeria de imagens e expressões que ia inventando no decorrer do ano e passava a usar sempre que a ocasião permitia. Seus leitores adoravam isto - e passavam a repeti-las entre si, no dia-a-dia. Eis algumas:."O sol de derreter catedrais" era uma imagem para definir o Rio no verão. O "mau tempo de 5º ato do Rigoletto" queria dizer muita chuva. "Sentar no meio-fio e chorar lágrimas de esguicho" explica-se por si, sendo o meio-fio a maneira como os cariocas chamam a beirada do passeio. Quando um sujeito se irritava muito, Nelson dizia que ele "subira pelas paredes como uma lagartixa profissional". O próprio Nelson, com a quantidade de colunas diárias que tinha de escrever, dizia que trabalhava como um "remador de Ben-Hur" - lembra-se do filme? E havia o "débil mental de babar na gravata", a "vizinha gorda e patusca", o "fauno de tapete"..O brasileiro, segundo ele, era "um narciso às avessas", que "cuspia na própria imagem". As pessoas que o abordavam na rua, como se fossem velhos amigos, mas que ele nunca tinha visto, eram os seus "desconhecidos íntimos". Quando, naquela época, os padres brasileiros começaram a trocar a pregação religiosa pela doutrinação política, Nelson escreveu: "O Brasil ainda será o maior país ex-católico do mundo." Não sei se foi pelo motivo que ele apontou, mas, a continuar o inacreditável crescimento das seitas evangélicas e pentecostais dos últimos trinta anos no Brasil, sua profecia se realizará..Nelson dizia que "só os profetas enxergam o óbvio". E exemplificava com a história de seu amigo Otto Lara Resende, que, durante anos, passou de carro todos os dias em frente ao Pão de Açúcar e nunca o vira. Um dia, casualmente, Otto olhou pela janela e viu a monumental pedra na baía de Guanabara. Freou de repente na pista de alta velocidade, saiu alucinado do carro e, tendo palpitações, apontava para o Pão de Açúcar e exclamava: "De onde saiu? De onde saiu? Ontem não estava aqui!" As pessoas que pararam atrás dele tiveram de abaná-lo. E Nelson concluía: "Era o encontro triunfal do Otto com o óbvio. O óbvio ululante!".Nelson era um permanente apaixonado. Dizia que "todo amor é eterno; se não é eterno, não era amor" e que o segundo casamento era "o adultério com guaraná, salgadinhos e convidados". Mas ele próprio se casou, não uma nem duas, mas três vezes, sendo o terceiro casamento, de novo, com sua primeira mulher. O importante, para ele, era o amor: "O amoroso é sincero até quando mente." E outra: "O dinheiro compra até amor verdadeiro." Nelson, que não falava nem escrevia palavrões, acreditava: "Todas as palavras são lindas. Nós é que as corrompemos." Outra de suas obsessões era a nudez: "O biquíni é a nudez pior que a nudez." Mas, para ele, havia algo ainda mais condenável: "O rosto é a parte mais obscena do ser humano. Do pescoço para baixo, podíamos andar nus.".Nelson gostava dos loucos. Seus favoritos eram os sujeitos que pensavam ser Napoleão. E explicava: "O verdadeiro Napoleão é o Napoleão de hospício - porque não teve o seu Waterloo." Numa época, fins dos anos 60, em que os jovens estavam botando fogo nos costumes e se julgando donos do mundo, Nelson recusou-se a se juntar ao coro de velhos que tinham passado a adulá-los. "Os jovens têm todos os defeitos dos adultos e mais um - o da inexperiência", dizia. E aconselhava: "Jovens de todo o mundo, envelheçam!".Quanto à frase sobre Brasília, depois dos treze anos de inacreditável corrupção promovida pelos governos de Lula e Dilma, o de Bolsonaro, que acabou de se instalar prometendo ser o mais incorruptível de todos, já começa a ter falcatruas denunciadas. E, como os anteriores, também se diz inocente. Nelson tinha razão: todos são inocentes - e todos são cúmplices..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).