México. Antes e depois do muro
Mala de viagem (117). Um retrato muito pessoal do México.

"Em 1982, viajei na TWA e num Ford Mercury Lynx", disse-me o autor de "Viagem à Costa Ocidental da América", onde conta o seu périplo pelo sul dos Estados Unidos e norte do México. Este é um dos muitos livros de viagens de Vasco Callixto. Comprei-o num alfarrabista e, curiosamente, estava dedicado à primeira adquirente, em 10 de novembro de 1983. Consegui que, depois, o autor o autografasse para mim. Aconteceu a 27 de abril de 2021, no Palácio da Independência, em Lisboa, precisamente oito meses antes da sua morte. Vasco Callixto viajou por todo o mundo e escreveu artigos, livros e publicações no Facebook até se findar aos 96 anos. Foi um dos promotores, em Portugal, da literatura de viagens. Estes meus escritos também se querem referir a alguns dos outros viajantes portugueses que têm deixado escritas as suas rotas pelo mundo. Prometi-lhe fazer a viagem ao México através das suas páginas e dar-lhe uma atualização a partir de uma necessária pesquisa. Depois do sul dos Estados Unidos, Vasco Callixto descreve o norte do México: "A fronteira mexicana, realmente, separa dois povos bem diferentes, duas maneiras de viver distintas. Mas, por razões óbvias - a língua, o aspeto das povoações e o modo de ser das populações, tudo fazendo lembrar a Espanha - para nós, portugueses, uma estadia no México faz-nos sentir mais perto das nossas fronteiras, põe-nos mais à vontade." No capítulo dedicado ao México, descreve um litoral quase desprovido de estradas e um deserto de boa estrada até San Luis do Río Colorado. Callixto descreve Ejido de Cuernavaca, com o seu mercado de artesanato, e ainda a cidade de Mexicali e o Motel Cosmos, agora denominado Hotel Cosmos Don Carlos. Mais além, em direção ao litoral, surgem Ensenada, principal estância balnear da Baixa Califórnia, e o Hotel Mision Santa Isabel, onde pernoitaram, mas não nas camas de água, uma novidade para a época. O hotel ainda existe na Avenida López Mateos, esquina com a Calle Castillo. Talvez tivessem degustado os pratos típicos, deliciosos tacos de peixes e de camarão, ou o "ceviche" feito com peixe cozido no limão e legumes e geralmente servido em torradas acompanhadas de abacate e salsa; ou mesmo o "carpaccio", com pedaços de peixe em molho de soja especial e especiarias - o Mediterrâneo em pleno Pacífico. Em frente dessa cidade buliçosa, na baía, ficam as pequenas ilhas de Todos-os-Santos, que, segundo Vasco Callixto, inspiraram Robert L. Stevenson a escrever o seu famoso livro "A Ilha do Tesouro", escrito precisamente 100 anos antes da visita de Vasco Callixto e editado em 1883. Porém, não existem provas dessa inspiração. Mais adiante na sua viagem, surge La Bufadora, "virada ao mar largo", que provém de um "geiser" marítimo, em permanente atividade até cerca de 20 metros, como uma força tal que produz um som peculiar, como se fosse um animal furioso, sendo considerado o maior do mundo. E, continuando a viagem, vai-se ao encontro de Tijuana, cidade fronteiriça e a mais ocidental do país e da América Latina. Recentemente, a cidade teve um crescimento acentuado, devido à migração do sul do México para os Estados Unidos. Isso levou a cidade a desenvolver-se para sul e leste, denotando-se uma união física entre as cidades de Tijuana, Rosarito, Tecate e San Diego, realidade que, há 40 anos, não se via. Nessa viagem, o casal Callixto viajou pela costa na estrada antiga, desfrutando mais do que se fosse pela autoestrada. Nessa cidade vibrante, o almoço foi uma canja de galinha num estabelecimento de um galego de Vigo. Presentemente, a cidade é muito diferente da realidade conhecida há 40 anos. Tijuana é considerada uma cidade global, por ser um centro cultural, comercial e de produção líder na América do Norte, com instalações de muitas empresas multinacionais, a tal ponto que foi batizada como "A Esquina do México" e "A Porta do México" - "Aquí empieza la pátria" (Aqui começa a pátria), segundo o lema local. Depois, o casal seguiu até aos Estados Unidos, sem que antes tivesse atestado o depósito do Mercury, "para despedida do bom preço da gasolina no México". Na época, ainda não havia o muro de divisão de fronteira, porque a sua construção aconteceu em 1991 e as obras foram intensificadas a partir de 1994 quando o Governo dos Estados Unidos iniciou a "Operação Guardião", cujo objetivo foi aumentar a proteção das fronteiras. Com os atentados de 11 de setembro de 2001, o Governo norte-americano encontrou o justificativo ideal para prosseguir e expandir ainda mais o muro. Ao longo da sua campanha presidencial de 2016, Donald Trump anunciou o prolongamento do muro, fortificado. Com a sua vitória, dois anos depois começou o troço de San Diego, facto comemorado como a primeira fase da "muralha de Trump". Porém, no seu primeiro dia no cargo, em 20 de janeiro de 2021, o presidente Joe Biden assinou uma ordem executiva para parar a construção do muro de Trump, cumprindo uma promessa de campanha. Entre a viagem do meu amigo Vasco Callixto e hoje, construíram-se muros de mais e pontes de menos, mas a todo o momento podemos quebrar os muros e transformá-los em pontes, por onde os "Ford Mercury" deste tempo possam circular livremente.
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Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.