"Tinha receio de não conseguir criar a prestação única para a deficiência, mas já consegui"
Dizem que é uma mulher de causas. Foi isso que a levou a esta incursão na política?
Sempre tive um percurso profissional e um de causas, um percurso de ativista, digamos assim, mas nem sempre ligado à causa dos direitos das pessoas com deficiência. E é engraçado porque até certa altura fiz um percurso de vida alheio à questão dos direitos das pessoas com deficiência. Tratava de mim e já estava bom, mas houve um momento na minha vida em que, um bocado à força, sou acordada para uma realidade que afinal era muito mais transversal e que ia muito mais para lá de mim. Percebi que existem outras pessoas com deficiências, se calhar em pior situação do que eu. Aos 20 e poucos anos fui desafiada para integrar os órgãos de direção da ACAPO, da qual era sócia desde criança por iniciativa dos meus pais, mas nunca tinha tido nada que ver com a associação até aí. Na altura não me fazia muito sentido, não estava desperta para aquela situação, mas comecei a colaborar até um bocadinho a contragosto simplesmente para não ser desagradável com quem pedia a minha ajuda, mas confesso que fiquei completamente agarrada.
Foi o entrar na ACAPO que a despertou para os problemas dos outros e da situação dos cegos em Portugal? Qual foi a primeira situação que considerou que deveria ser resolvida?
Não sei se houve uma primeira situação, o que me lembro é que progressivamente o trabalho que estava a fazer, que era voluntário, pós-laboral e uma dádiva inteira de mim, era no meu tempo pessoal, deixou rapidamente de ser um sacrifício para passar a ser algo que fazia com muito gosto. Quando tinha de tomar posições públicas junto de um órgão do poder político, da Assembleia da República, de um grupo parlamentar, fazia-o com gosto. Permitiu-me alargar as minhas perspetivas, percebi, por exemplo, que havia muita gente que não conseguia aceder ao mercado de trabalho, que muitos viviam com muito pouco dinheiro e que outros tinham sérias dificuldades em sair de casa porque nunca tinham ganho a confiança necessária para ir para a rua com uma bengala na mão e ultrapassar barreiras. Foi aí que pensei que de certeza haveria muitas coisas que podiam ser feitas para eliminar esta situação.
Foi isso que a levou a aceitar este cargo?
Quando aceitei este cargo o meu envolvimento nas questões da deficiência já era muito longo. Mas quando fui convidada fiquei um bocado assustada. Não vou dizer que não fiquei. De repente era um passo muito grande, muito diferente. Era algo em que não tinha pensado.
Nunca tinha pensado a sério numa situação destas?
Não tinha mesmo. Quando recebi um telefonema a convidar-me para ser deputada não me chocou assim tanto nem fiquei assustada, mas acabei por não ser eleita. Fui a primeira pessoa a não entrar pelo círculo de Lisboa. Para mim aquilo ficou ali. Poderia entrar no Parlamento por substituição, mas pensei: olha, se for chamada, fui, se não for não fui. Quando três semanas depois surge este convite, após todo aquele período conturbadíssimo do governo PAF e com o surgimento da nova solução apresentada por António Costa, aí sim fiquei mesmo assustada. Mas tive logo uma noção muito rápida e prática da situação. Eu não podia dizer que não, dizer que não naquele momento era desdizer tudo o que tinha andado a fazer nos últimos anos de ativismo. Todas as lutas que tinha travado... Embora em alguns momentos tivesse vontade de dizer que não. Sabia que ia ser muito complicado e um desafio muito grande, mas ao mesmo tempo pensava: tenho de fazer isto, tenho de dizer que sim.
Quando chegou já trazia prioridades definidas ou teve de as adaptar ao programa do governo?
Tinha já algumas prioridades, mas elas também estavam bem definidas no programa do governo, para o qual contribui e ajudei a redigir. Mas ainda hoje, e periodicamente, gosto de olhar para elas. Não eram muitas, umas cinco ou seis, dividas em grandes grupos, algumas sei que já cumpri, outras ainda não.
Quais é que já cumpriu?
A mais difícil de todas e que tinha muito receio de não conseguir cumprir era a prestação social de inclusão (PSI), uma prestação única para a deficiência, mas já consegui. É uma medida que implicou um investimento global do atual governo de muito dinheiro, no ano que vem ascenderá a uma verba de 440 milhões de euros. O medo era por se tratar de uma medida com um fortíssimo impacto no Orçamento e sabia que só mesmo com muito apoio político conseguiria que fosse para a frente. E tive sempre esse apoio político.
Essa verba já contempla o aumento dos 153 milhões previstos para o próximo ano. Em que se traduz esse aumento: mais pessoas a receber ou um aumento da pensão a cada uma?
Contempla as duas coisas. No ano que vem vamos alargar o acesso a esta prestação às pessoas com menos de 18 anos, até agora era só a partir desta idade. Não consigo dizer se todas as crianças irão logo ter acesso, mas pelo menos um conjunto substancial delas poderá usufruir desta medida. Mas haverá também um aumento em valor para alguns dos atuais titulares da PSI, porque aquilo que as pessoas auferem agora tem que ver com a componente base desta prestação, que pode ser requerida por qualquer pessoa com deficiência desde que a ateste até aos 55 anos.
Qual é o objetivo da medida?
Esta medida pretende ser uma resposta à situação de deficiência, independentemente de a pessoa ter mais ou menos rendimentos, ter mais ou menos condições para uma vida independente. Digamos que é uma componente da prestação que diz: nasceste com uma deficiência ou adquiriste-a em determinado momento da tua vida e essa situação trouxe-te constrangimentos, ou maior dificuldade em construir uma carreira e um perfil contributivo, portanto deves ser compensado por isso e ter uma verba adicional que te ajude a fazer face às despesas adicionais.
E se uma pessoa não tiver atestado a deficiência até aos 55 anos?
Não pode aceder, por enquanto. Foi uma norma-travão que tivemos que introduzir.
Porquê?
Não foi porque de repente nos lembrámos de ser mauzinhos. Não foi isso. É que, para lá dos 55 anos há situações que surgem na vida e na saúde das pessoas que condicionam a sua capacidade física. E não é por isso que passam automaticamente a ser uma pessoa com deficiência. Se a pessoa começar a acumular artroses, bicos de papagaios e afins, se for à junta médica sai de lá com um grau de incapacidade talvez de 60%. E por isso quisemos diferenciar as situações de deficiência, em que efetivamente a pessoa adquiriu limitação física ou neuro-orgânica numa fase precoce da vida, tendo isso implicações na sua carreira contributiva, das que surgem pelo facto de estarmos a envelhecer. Claro que isto pode ter algumas injustiças associadas, não deixamos de ter consciência disso. Se uma pessoa ficar paraplégica aos 58 anos e se não puder aceder à PSI é uma situação de injustiça.
Essas situações não vão ser contempladas?
Havemos de lá chegar. Por exemplo, neste orçamento já ficaram contempladas as situações de pessoas que mesmo tendo deficiência há muitos anos nunca a tinham atestado na Segurança Social. Alguns já tinham nascido com deficiência. Tivemos de ter uma base de documentação alternativa para resolver estas situações. (No dia 25 de novembro, já depois desta entrevista, o governo aprovou em Conselho de Ministros a extensão do complemento solidário de invalidez para pessoas com mais de 65 anos e que, por alguma razão, não tinham conseguido atestar a deficiência até aos 55 anos e conseguido aceder à PSI.)
Uma das suas prioridades era também diminuir a pobreza nesta população. É outra meta cumprida?
Era uma meta muito exigente e em alguns momentos pensei se conseguiria ou não cumprir, ou se iria cumpri-la parcialmente. E em relação a este objetivo também sinto que cumpri. Ou seja, ainda não cumpri neste momento, mas sei que vou cumprir no próximo ano. Além da PSI vamos dar um complemento, um subsídio que se destina a todas as pessoas com deficiência em situação de carência económica. Portanto, penso que cumpri, porque este complemento é uma resposta à situação de pobreza. Se calhar dizer isto é demasiado ambicioso, mas acho que vou conseguir atenuar.
Quando é que esse complemento vai começar a ser atribuído?
No próximo ano, neste momento ainda estamos a receber requerimentos para a sua atribuição. É um complemento que pode ir do zero, se não for atribuído, até aos 431 euros. É atribuído em função dos rendimentos da pessoa com deficiência e do seu agregado familiar, considerando-se que o agregado familiar são os parentes diretos em segundo grau, ou seja pais e filhos apenas.
Em que teve mais dificuldades em explicar aos seus parceiros no governo e no Parlamento. Estavam despertos para estes problemas?
Em algumas situações tive de me chegar à frente e fazer um trabalho de sensibilização diária. Houve algumas situações em que encontrei pessoas que estavam a zeros em relação ao assunto, outras nem por isso, e outras de quem recebi uma abertura a 100%. De as pessoas me dizerem: vamos fazer, vamos para a frente e vai ser assim. Mas não posso negar que também tive outras em que recebi resistência. Houve um pouco de tudo. Mas orgulho-me muito das coisas que fizemos em conjunto com outros ministérios.
Quais, por exemplo?
O que fizemos com as infraestruturas e planeamento, termos conseguido fundos comunitários para financiar projetos. O que vamos conseguir em breve para as acessibilidades, o que fizemos com o turismo, com o desporto com a equiparação das bolsas dos atletas paraolímpicos ao primeiro nível. São áreas em que foram feitas coisas que são irreversíveis, em que já não vai ser possível dar passos atrás.
Na área da educação O Decreto-Lei n.º 54-2018 destinado ao ensino inclusivo foi uma bandeira sua?
É uma lei importante. É a revisão do Decreto-Lei n.º 3-2008, que já existia. A lei tem sido um pouco polémica, tem tido oposição, e isso é o que mais me marca pela negativa. Perceber que por vezes são as pessoas que mais próximas deviam estar desta causa da inclusão que mais problemas levantam à própria inclusão.
Refere-se a instituições, às famílias?
Nesta matéria da educação tenho visto resistências múltiplas. E isso preocupa-me, assusta-me, quando vejo oposição por parte dos próprios docentes de educação especial e de algumas famílias.
A lei entrou em vigor há dois meses, já tem algum feedback por parte do Ministério da Educação?
Tenho feito pontos de situação periódicos com o secretário de Estado da Educação, João Costa, que é a pessoa que mais diretamente está a acompanhar este processo. Foi criada uma linha de contacto direta com o ministério para se receber reclamações e pedidos de esclarecimento das escolas sobre o que está a correr pior. E se compararmos o número de notificações que recebemos através desse e-mail com a contestação que vemos nas redes sociais, as reclamações recebidas não são significativas. Não percebemos a lógica, se há casos concretos que nos façam chegar, vamos tentar resolvê-los caso a caso.
O que lhe tem chegado mais? Queixas de pais ou das próprias escolas sobre os meios que têm e que deveriam ter?
Acima de tudo chegam-nos pedidos de professores de educação especial a requerer mais professores, o que tem de ser visto sempre caso a caso e escola a escola. Mas não creio que este seja o principal problema, nem de longe. Temos muitos Centros de Educação Especial e o que estamos a pedir-lhes é que repensem e nos ajudem a repensar o seu papel nesta inclusão escolar.
Nestes três anos, acha que conseguiu mudar a mentalidade do próprio sistema político, do próprio Estado?
Não sei, quero acreditar que sim. Mas é difícil fazer essa avaliação agora. Acho que isso só se conseguirá com algum distanciamento, daqui a uns anos, para se compreender os impactos das medidas que tomámos.
Já falou da PSI e da educação inclusiva como prioridades e que cumpriu, que outras tinha?
A da vida independente, que levou à criação dos Centros de Apoio à Vida Independente (CAVI). Os centros que irão gerir e ajudar pessoas com deficiência a encontrar um assistente pessoal. Estes centros podem ser instituições que já existiam e que se comprometem a ter esta nova resposta, ou podem ser instituições que se criam e que vão dedicar-se a esta função. É um desafio muito grande porque é muito fora da caixa em relação àquilo que as instituições estão habituadas a fazer.
O que vão fazer estes centros?
No fundo, são estes centros que vão pré-selecionar pessoas para esta função e estabelecer um contrato com quem for escolhido, tendo de gerir o dia-a-dia desta pessoa. Imaginemos que o assistente pessoal não pode comparecer porque está doente ou porque está de baixa, são os centros que vão ter de encontrar uma pessoa de substituição. A pessoa com deficiência não ficará sem um assistente pessoal. Trata-se de um projeto-piloto de três anos e que sabemos que para já não conseguiremos fazer chegar a toda a gente. Uma pessoa que lhe permitirá ter mais autonomia.
Foi a sua experiência que a levou a avançar com uma medida destas?
Não estou a inventar nada. É um modelo que já existe em vários países, mas com realidades económicas e sociológicas muito diferentes da nossa, Inglaterra, Suécia, Noruega, e alguns projetos-piloto na Finlândia. Mas tem funcionado de maneira diferente em cada país. Há países em que é atribuído um montante à pessoa e que lhe dizem trata da tua vida e orienta-te como melhor te aprouver. Há países em que as pessoas são elas próprias incentivadas a constituírem-se como cooperativas e a juntarem os seus recursos.
Vai exigir muita formação às pessoas que vão desempenhar estas funções?
Sim, sobretudo para as pessoas perceberem que têm uma capacidade de intervenção limitada. É uma função que vão desempenhar e não podem entrar pela vida das pessoas assim de qualquer maneira.
O que fica então por fazer?
Daquilo que tínhamos definido vamos tocar em tudo de uma maneira geral. O que talvez tenha ficado e se encontre ainda com mais lacunas é trabalho e a cooperação direta com a saúde. É nisto que precisamos de uma melhor articulação, quer a nível de prescrição de produtos de apoio e de tecnologias quer de apoio à saúde. Mas há uma outra área que ainda gostava de ter oportunidade de pegar e que tem que ver com questão da prevenção de violência contra pessoas com deficiência, que é um problema que vou constatando com o tempo. Já fazemos algum trabalho de formação da GNR e da PSP para identificação de potencial violência a que sejam sujeitas pessoas com deficiência, mas ainda não é suficiente. Temos de fazer mais.
São menos reportadas?
São ainda menos reportadas do que as situações comuns de violência e acontecem na família, no casamento, etc. Nas instituições em regra é mais fácil de detetar porque alguém fala em determinado momento. Há mais controlo. O pior é na própria família ou dentro de um contexto social em que a pessoa esteja inserida, escola, emprego, enfim... e é um processo ainda mais solitário.
Uma das prioridades que definiu para o último ano de mandato é o aumento da empregabilidade da pessoa com deficiência. Tem já propostas concretas?
Já temos uma parte desse trabalho concluído que tem que ver com a regulamentação de quotas nas empresas para pessoas com deficiência para o setor privado. A lei foi aprovada recentemente pela Assembleia e é um trabalho conjunto entre PS e BE, em que nós colaborámos muito na retaguarda. Mas para se aumentar a empregabilidade da pessoa com deficiência não chega aplicar uma lei que diga tens que contratar ou que diga que será aplicada uma multa se não o fizer. É preciso formar...
Só as quotas não chegam...
As quotas vão funcionar. O que foi aprovado pela AR é que todas as empresas, médias e grandes, terão de contratar trabalhadores com deficiência, umas 1%, outras 2%, no prazo de quatro anos. Isto vai vigorar, está regulamentado e estão previstas coimas para o incumprimento e sanções acessórias. Agora, queremos que isto corra bem e que não se contrate só por contratar ou para não se levar uma multa. É preciso efetivamente que todos nós, e quando digo nós, o INR e o IEFP, ajudemos a criar soluções estruturais de aproximação e de mediação entre quem procura um emprego e quem está disposto a dar uma oportunidade de emprego a uma pessoa com deficiência. Que se ajude na aproximação entre empresários empregadores e pessoas com deficiência à procura de trabalho. É isso que nos propomos fazer.
Quatro anos de mandato é pouco tempo para se mudar um setor em que há tanta coisa para fazer?
Acho que é um tempo considerável. Dá para fazer muita coisa, mas para pessoas como eu, que vêm de fora da área ministerial, acaba por se revelar curto, temos muita coisa para aprender, principalmente sobre como nos orientar e gerir no meio da política e na sua organização. Confesso que a principal dificuldade que senti foi essa, o ter vindo parar a uma realidade nova onde tudo é diferente.
Não foi fácil?
Tem sido um desafio. Por exemplo aprender a lidar com as questões orçamentais. Tive de aprender tudo, foi quase do zero. Portanto, tenho noção de que não fiz tudo bem em todos os momentos porque tive de aprender por mim. Ninguém ensina nada e isso às vezes tem consequências que não são as mais positivas. Se calhar teríamos conseguido aplicar mais cedo algumas medidas.
Quando sair, de consciência tranquila e do dever cumprido?
Pelo menos até agora sim. Sei que o tempo que aqui passei tem sido útil e produtivo em prol das pessoas com deficiência. E espero continuar a desenvolver um trabalho que me permita continuar a sentir assim: que estou a fazer alguma coisa. Porque no dia em que sentir que não estou cá a fazer nada, que sou uma figura, então não vale a pena estar cá.
Considera que conseguiu mudar o processo das mentalidades em relação à inclusão?
Quero acreditar que este trabalho não é um trabalho regressivo. Ou seja, quando se conseguem dar passos significativos no sentido de maior inclusão, de maior aceitação e de reconhecimento da pessoa com deficiência e como igual, acredito que isso não andará para trás. Espero sinceramente que este processo em relação às mentalidades vá continuar um percurso positivo.
E se houver hipótese de continuar neste cargo após as próximas eleições?
Não sei, há muita coisa a acontecer. Vai haver uma grande mudança na minha vida em breve e preciso de a viver para perceber o que vai acontecer daí para a frente. Gostar? Acho que gostava, mas é preciso ver quem é que ganha as eleições, quem continua. Há muita coisa a acontecer...
Ao longo desta semana o DN vai publicar reportagens que integram o trabalho sobre "Deficiência: Um mundo sem limites"