AOC. Com três letrinhas apenas se escreve o futuro da esquerda americana
Os caloiros do Congresso norte-americano ainda não tinham começado a aquecer os lugares quando, em fevereiro de 2019, a neófita representante do 14.º distrito de Nova Iorque fez explodir o canal da C-SPAN, que transmite as sessões do Capitólio. Com o seu discurso sobre o "jogo da corrupção" nos Estados Unidos, Alexandria Ocasio-Cortez bateu recordes de visualizações e mostrou ao mundo porque é que tinha conseguido ser a mais jovem mulher de sempre a ser eleita para o congresso, aos 29 anos.
Na semana passada, a congressista conhecida pelo acrónimo AOC voltou a protagonizar um dos discursos mais vistos e partilhados do ano. Durante dez minutos, refletiu sobre a atitude de homens poderosos que se acham no direito de insultar e atemorizar mulheres com quem trabalham, com aparente impunidade, partindo de um incidente que aconteceu entre si e Ted Yoho. O representante republicano abordara-a para a descompor, de dedo espetado na sua cara, clamando que ela era "repugnante" e "perigosa" e terminando com uma adjetivação que pode ser traduzida de forma livre como "cabra de merda".
AOC repetiu estas palavras no Capitólio e rejeitou as afirmações posteriores de Yoho, que negou o insulto e disse que era casado e tinha duas filhas. "O que acredito é que ter uma filha não torna um homem decente. Ter uma mulher não torna um homem decente", argumentou AOC. "O que torna um homem decente é tratar as pessoas com dignidade e respeito."
As palavras da representante democrata, que falou de um problema estrutural na sociedade, tiveram repercussão muito para lá da escadaria do Congresso, em Washington, D.C., numa altura que ainda é de acerto de contas no rescaldo do movimento Me Too. Ocasio-Cortez pegou neste incidente e transportou-o para uma conversa maior, usando o seu contexto pessoal - o de uma das figuras democratas mais odiadas à direita - para ilustrar o embate social de um movimento que continua a fazer eco.
"O discurso que fez sobre Yoho foi surpreendente, porque ela não apenas falou da total ausência de conduta profissional dele, mas também do problema mais alargado", disse ao DN a realizadora Stacey Young, que vive em Nova Iorque, o estado que elegeu AOC. "Há algo culturalmente errado na América quando os homens sentem que podem atacar uma mulher daquela maneira", continuou. "Há violência na linguagem, há violência física e ela pegou num incidente e expandiu-o para mostrar o problema maior de que não se está a falar suficientemente."
Mesmo pessoas que não partilham das ideias políticas de AOC, que pontifica na ala mais à esquerda dos democratas, mostraram-se tocadas pelo seu discurso. "Ela tem a capacidade de fazer isso, o que a torna tão apelativa para as pessoas. Consegue expressar grandes ideias de forma simples e eficaz", considerou.
Stacey Young é uma eleitora independente para quem a ascensão surpreendente de Ocasio-Cortez se deveu ao cansaço dos eleitores com a complacência dos seus representantes. "Havia um incumbente no lugar dela que estava lá há muito tempo e as pessoas queriam alguém que mudasse as coisas", explicou, referindo a necessidade da "mudança real e sistémica que nos falta há décadas". Segundo Young, parte do apelo de AOC foi o foco num abanão estrutural, que permita corrigir a estagnação dos salários e o fosso cada vez maior entre milionários e trabalhadores.
"Todos os políticos da velha guarda fazem parte dessa inércia e não conseguiram fazer o suficiente pelas pessoas, especialmente em Nova Iorque, onde é tão caro viver e sobreviver", sublinhou.
O 14.º distrito de Nova Iorque que Ocasio-Cortez representa cobre porções do Bronx e de Queens e tem um salário anual médio bastante baixo para a realidade de Nova Iorque, cerca de 58 mil dólares (ou 4860 euros por mês). A maior parte da população é de origem hispânica (49,8%). Um distrito da "classe trabalhadora", refere Young, "com pessoas que têm muitas necessidades e querem ser ouvidas".
Foi isso que Ocasio-Cortez fez na sua campanha. Andou a bater às portas, a participar em reuniões das comunidades, a aparecer em eventos para ouvir os eleitores. AOC também apelou aos eleitores por exemplificar o espírito de uma classe de pessoas que não desistem. "Dada a história dos porto-riquenhos, que têm de lutar pelos seus direitos dentro e fora da ilha, AOC representa o verdadeiro espírito dessa luta", disse ao DN a produtora de televisão Eneida Tirado, também ela uma nova-iorquina com origem em Porto Rico.
"Quando os porto-riquenhos migraram para Nova Iorque, formaram sua própria identidade, conhecida como nuyorican", explicou, dizendo que estes "novo-riquenhos" têm uma longa tradição de combate às injustiças, à pobreza, racismo e discriminação. "Ela representa o verdadeiro espírito de nunca desistir, de encontrar outro caminho", considerou. "Ela também compreende, por experiência própria, a luta de ser pobre, proveniente de uma família da classe trabalhadora."
É o epítome, disse a produtora, do soldado no terreno. A sua aparição na cena política dos Estados Unidos pareceu acontecer de rompante, mas foi precedida de um trabalho de fundo. Sabia-se que 2018 iria ser um ano histórico, não só pelo número de mulheres que se candidataram a lugares, mas também pela diversidade de etnias e formações dos candidatos. AOC batia em todas as marcas. Uma mulher muito jovem, porto-riquenha, alinhada com a fação mais progressista do Partido Democrata e apoiante de Bernie Sanders. Uma representante que quer empurrar os democratas para a esquerda e não tem paciência para os tubarões do seu próprio partido. A sua vitória sobre o incumbente Joe Crowley, que estava naquele lugar desde 2004, deixou muita gente boquiaberta. Mas poucos adivinhariam que, após a sua vitória nas eleições de novembro de 2018, se tornaria um dos alvos mais frequentes do partido republicano e do presidente Donald Trump.
Stacey Young sublinha, no entanto, que é injusto dizer que ela foi eleita por ir na vaga do "ano da mulher". "Em parte foi por causa disso, mas ela trabalhou muito para chegar lá. Andou a bater às portas, organizou-se, fez algo muito similar ao que Barack Obama fez em 2008", disse. "Tinha um exército de pessoas a trabalharem com ela e a falarem com as pessoas, a irem às reuniões das comunidades, tentando perceber quais eram as suas necessidades. Derrotar um congressista incumbente sendo desconhecida não é fácil. É incrível que tenha conseguido."
O novo congresso tomou posse a 3 de janeiro de 2019 e, pouco tempo depois, o quarteto de caloiras composto por Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Rashida Tlaib e Ayanna Pressley já era conhecido como "o esquadrão". As mulheres, de diversas etnias, destacaram-se pela vontade de enfrentar os poderes estabelecidos em Washington D.C. e tornaram-se alvos de ataques do presidente e dos seus apoiantes.
Quando AOC apresentou um plano radical para combater as alterações climáticas, o Green New Deal, muitos conservadores ficaram a hiperventilar. Ela encarna a visão de uma nova ordem social, uma mulher com poder que quer desmontar o statu quo. O comentador Tucker Carlson, que tem o programa mais visto da Fox News, escolhe-a frequentemente para as suas críticas. AOC é a cara do apocalipse socialista e ambientalista entre as hostes conservadoras.
"Há qualquer coisa nela que leva alguns destes homens a uma fúria irracional", afirmou Stacey Young. "Não sei de onde isso vem, mas acontece."
Não são apenas as suas ideias, tidas como radicais até entre os democratas moderados. É também a sua origem. Porto Rico é um território dos Estados Unidos e os seus habitantes são cidadãos americanos, mas para muitos esta ascendência é motivo de questionamento e discriminação. Assim como o estrato social de onde vieram: Alexandria Ocasio-Cortez, cuja mãe fazia limpezas, chegou a ser empregada de bar e é por esse trabalho que o presidente Donald Trump costuma identificá-la. Mas AOC não saiu propriamente da discoteca para o Congresso.
"Uma coisa que me chateia é que as pessoas negam a inteligência dela", frisou Stacey Young. "Esta é uma mulher que ficou em segundo lugar na feira de ciência da Intel quando estava no secundário, o que é difícil de fazer, são milhares de estudantes a candidatar-se", sublinhou.
A distinção aconteceu em 2007, quando AOC era uma adolescente de óculos retangulares que frequentava a escola secundária de Yorktown. Ficou em segundo lugar na categoria de microbiologia na ISEF, maior feira de ciência para jovens do mundo. O seu projeto demonstrava como antioxidantes tinham a capacidade de prolongar a vida de lombrigas até 33 dias e o prémio levou a que o Lincoln Laboratory do MIT nomeasse um asteroide - o 23238 Ocasio-Cortez - em sua homenagem.
Depois de ingressar na Universidade de Boston para estudar ciência, AOC mudou para Economia e teve um primeiro contacto com a política quando estagiou no gabinete de emigração do senador democrata Ted Kennedy. Em 2011, licenciou-se com louvor.
"A antipatia por ela existe porque ela representa o oposto de tudo o que os seus detratores adoram estereotipar, quando muitos desses estereótipos estão errados, são mentiras, racistas e sexistas", disse Eneida Tirado. A ideia subjacente é que mulheres assim não devem ter lugar nos corredores do poder. "Não é suposto que pessoas como ela e eu estejam naquela sala ou sentadas àquela mesa."