Presidência alemã da UE arranca com "desafios enormes"

A 1 de julho, a Alemanha inicia um ciclo de três presidências, sendo seguida pela portuguesa, em janeiro, e a eslovena, em julho de 2021.
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A chanceler Angela Merkel prepara-se para dar o pontapé de saída, esta quarta-feira, 1 de julho, na presidência alemã da União Europeia, a primeira de um ciclo de três e que nos próximos seis meses marcará muito daquilo que será também a presidência portuguesa, que arranca em janeiro, e a eslovena, que se inicia daqui a um ano.

Os governos já estão a trabalhar em conjunto há vários meses. E, muito recentemente, intensificaram os esforços para que o desejado sucesso da agenda do trio não venha a ser completamente achatado pela pandemia.

As três presidências "farão o possível" para restaurar e aprofundar o mercado único, avançar na transição verde e na transformação digital", como declararam no texto assinado pelos três governos, em que definem o programa de trabalho do Conselho da União Europeia, previsto para 18 meses. O conjunto de compromissos está em linha com a estratégia que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tem vindo a defender e que não sofreu alterações, apesar do novo paradigma dominado pela covid-19.

A presidência alemã vai também ter de gerir os mais intricados dossiês durante os próximos seis meses. As incertezas impostas pelo novo coronavírus são apenas um dos estorvos. Junte-se a fase final do período de transição para o Brexit e o nó nas negociações de um futuro acordo comercial que tarda em ver a luz do dia. Mas o quadro de complexidade da próxima presidência não fica por aqui.

Berlim enfrenta o primeiro teste já no próximo mês, na cimeira agendada para 17 e 18 de julho, com a tarefa espinhosa de dar o empurrão que falta às negociações e fazer aprovar, por unanimidade, o plano económico concebido para mitigar as consequências da covid-19.

Até ao final do ano, a União Europeia terá também de ter ultrapassado todas as questões de que depende a aprovação do Quadro Financeiro Plurianual, que será o alicerce do plano que Bruxelas designou como Next Generation EU. Fontes ouvidas pelo DN, em Bruxelas, admitem que seja ainda necessária uma nova cimeira no final do mês.

O documento que procura consenso no Conselho Europeu é, como se sabe, inspirado na proposta franco-germânica para a criação de um fundo superior a 500 mil milhões de euros, através da emissão de dívida europeia. O oposto daquilo que, durante a crise anterior, definiu a posição do país que agora assume a presidência rotativa da UE.

"É como se Boris Johnson [o primeiro-ministro britânico], agora, defendesse a adesão do Reino Unido ao euro, e já não houvesse Brexit", ironizou o eurodeputado Udo Bullmann, militante do SPD alemão, entrevistado pelo DN, lembrando que sempre foi "muito crítico" da posição que outrora era defendida "acerrimamente por [Wolfgang] Schäuble", o austero ex-ministro alemão das Finanças e, desde 2017, presidente do Bundestag, o Parlamento alemão.

Reinventar

O ministro de Estado para a Europa do governo alemão, Michael Roth, considera que a crise do coronavírus obrigou o trio Berlim-Lisboa-Liubliana a "reinventar" a presidência rotativa. "Desenvolvemos um programa comum para os próximos 18 meses e precisamos de respirar fundo para enfrentar o futuro", comentou, quando o acordo entre as três capitais ficou concluído, convicto de que só "juntos", será possível "superar a crise".

O eurodeputado alemão Rainer Wieland acrescenta que será também necessário unir as posições das instituições de Bruxelas, conciliando-as em torno "não apenas do quadro financeiro" mas também do mecanismo de recuperação, pois "ou se resolve isto em conjunto ou falhará", conclui.

"As discussões atuais sobre o Quadro Financeiro Plurianual e o fundo de recuperação estão interligadas", apontou Wieland, que integra a família da direita do Partido Popular Europeu, numa conferência seguida em Bruxelas pelo DN. O político alemão, membro do partido CDU de Angela Merkel, considera "impossível" dar uma resposta "aos desafios de hoje" se se optar por "separar os dois tópicos", o plano de recuperação e o Quadro Financeiro Plurianual".

O enquadramento para conseguir afirmar esta agenda enfrenta porém diversas contrariedades, nomeadamente uma coesão interna constantemente desafiada pelos interesses individuais dos Estados, nos mais diversos domínios. E o objetivo de resolver a crise em conjunto impõe a Berlim a obrigação de "reconciliar e fechar brechas entre o norte e o sul", salienta a eurodeputada croata Eljana Zovko, reconhecendo a dificuldade que o governo de Zagreb, liderado pelo seu colega na direita europeia do PPE Andrej Plenkovi,ć teve para concertar posições no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual.

Ao longo do próximo período de ano e meio, que se inicia a partir de agora com a coordenação alemã, o conjunto das três presidências propõe-se "lutar pela soberania digital, garantir a autonomia estratégica da União Europeia através de uma política industrial dinâmica, apoiar pequenas e médias empresas e startups, (...) para reduzir a dependência excessiva de países terceiros".

"O programa do trio reflete a nossa visão comum sobre as prioridades da União Europeia para os próximos 18 meses", afirma a secretária de Estado portuguesa dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias. "Essas prioridades incluem soluções europeias para melhorar a resiliência das nossas economias perante a crise económica sem precedentes", salientou.

Parte do trabalho iniciado nos seis meses de responsabilidade alemã terá continuidade nos seis meses seguintes, dos quais Portugal está encarregado. Será nesta segunda etapa que "o programa do trio dá especial atenção à dimensão social da crise e à implementação do pilar europeu dos direitos sociais", continua a secretária de Estado. Em maio do próximo ano, Portugal organizará a Cimeira Social, a qual "pretende dar um impulso político" ao objetivo das questões sociais.

Finalmente, daqui a um ano, a Eslovénia promete assumir "com entusiasmo" a presidência da UE pela segunda vez. O que será a Europa em julho de 2021 é um enigma que permanece encriptado pelo coronavírus. "Para que as sociedades e as economias da Europa voltem a funcionar plenamente, precisamos de promover um crescimento sustentável e inclusivo, integrando a transição verde e a transformação digital", defende o secretário de Estado no Ministério dos Negócios Estrangeiros da Eslovénia, Gašper Dovžan.

Este coloca também como prioritária a necessidade de "melhorar a resiliência da Europa, desenvolvendo planos para enfrentar emergências, tais como pandemias, ciberataques a nível global ou pressões migratórias".

"Desafios enormes"

É relativamente consensual que há "desafios enormes" que se concentram nos primeiros seis meses do ciclo de presidências. "Não consigo lembrar-me de uma presidência que tenha sido confrontada com uma quantidade tão enorme de desafios, com a maior crise desde a Grande Depressão no século passado", avalia Udo Bullmann. O deputado acredita que "o quadro geral" sobre o "impacto económico e social do confinamento" só será conhecido "em outubro".

"Ficaremos muito preocupados, quando virmos que as pessoas continuam a sofrer, apesar dos esforços nacionais que foram feitos. E, se olharmos para o que se passa nos Estados Unidos e na América Latina, devemos preparar-nos para que não tenhamos aqui uma crise sanitária e uma crise de miséria", previne o político alemão, esperando que o ciclo de presidências que está prestes a começar "ajude a Europa a sair mais forte desta crise".

"É positivo que possamos usar o Orçamento europeu para multiplicarmos as nossas finanças e emitirmos dívida através do Orçamento europeu", afirma Bullmann. Mas o eurodeputado espera que o instrumento vá "além dos dois anos" e sugere que "deveria tornar-se um elemento contínuo. Já tivemos alguma experiência a esse nível, porque a legislação do plano Juncker usa o mesmo tipo de mecânica".

Solidariedade e mudança

"Solidariedade é transformação. Não devemos investir no passado e sim no futuro. Temos um grande debate, no programa nacional, sobre se devemos comprar ou não carros antiquados, movidos com tecnologia a gasóleo ou a gasolina. Temos de perceber que as alterações climáticas não vão parar", afirma Udo Bullmann, considerando tratar-se de um momento para "fortaleceremos a Europa do ponto de vista económico e social".

Isto passa também por acompanhar "objetivos de desenvolvimento de sustentável, recomendados por António Guterres nas Nações Unidas", investindo na "transformação socioecológica, e também com investimento nos bens públicos, como a saúde e a educação, para que as pessoas façam uso da sua inteligência, da sua esperança, para esculpirmos uma dinâmica positiva para o futuro".

"Sei que seis meses é um período muito curto. O processo pode ser iniciado. Mas o mais importante é que já iniciámos uma boa colaboração com o primeiro-ministro António Costa, e tenho a certeza de que será tão bem-sucedido como a Alemanha neste arranque", afirma.

Na sala de comandos, no arranque do ciclo de três presidências, estará o governo da economia mais poderosa da União Europeia, com um plano que parte de uma iniciativa conjunta com o governo francês de Emmanuel Macron. Com o motor e o veio de transmissão da Europa juntos a defenderem um plano que promete entregar milhares de milhões de euros à economia, ninguém contesta que a expectativa depositada na presidência alemã é altíssima. O resultado dos próximos seis meses será determinante para a União Europeia da "próxima geração".

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