Vasco Pulido Valente: "Se Ronaldo fosse um cirurgião, gostava de ser operado por ele"
Chamou ao seu novo livro O Fundo da Gaveta porque nada mais tem para editar. Regresso ao século XIX para explicar a Contra-Revolução de 1823-1824 e o fracasso do radicalismo monárquico de 1864-1870. Dois ensaios onde trata por tu os protagonistas dessa História de Portugal.
Vasco Pulido Valente lançou um livro novo, onde trata por tu Loulé, Sá, e muitas outras figuras da política do século XIX, aqueles que os portugueses só conhecem de ver nas placas com os nomes das ruas que herdaram do Duque de Loulé ou do Marquês de Sá da Bandeira. Confessa que é um volume "flagrantemente duvidoso" porque lhe faltam notas de investigação, mas os originais estavam perdidos e ao encontrá-los pouco mais fez do que corrigir a pontuação, confessa.
Enfiado numa poltrona, cruza alternadamente as pernas e responde longamente a cada pergunta. Só há uma resposta curta, quando se questiona se acredita em Deus: "Não." Nem mais uma palavra sobre o assunto, preferindo acender um cigarro que tira de um dos três maços espalhados sobre a mesa ao lado.
A hospitalização devido a um problema neurológico foi o pior momento no balanço de uma vida. O melhor, esse é mais difícil de escolher. Talvez a vida política e... Mário Soares: "Adorava o Dr. Soares. Foi, talvez, a pessoa mais extraordinária que conheci em toda a minha vida e a única que verdadeiramente admirei." A propósito, diz, "dizia-me sempre que a coisa que mais o irritava era quando me referia aos portugueses como indígenas. Ficava muito irritado e era o que mais lhe custava engolir nas minhas crónicas." Não deixa de referir - enigmaticamente - que o "Dr. Soares foi um homem que me fez muito mal pessoalmente, mas teve a generosidade de me perdoar os favores que lhe fiz".
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Está pouco interessado sobre a política atual: "Só na medida em que é reveladora das personagens." Quanto às novas lideranças do PS e do PSD refere sobre António Costa e Rui Rio: "É muito mau, mas sem comparação com os anteriores. Estes senhores podem ser medíocres, mas têm sentido das responsabilidades. Não são parvos como eram aqueles dois." Que dois? "Durão Barroso, que lá foi para a Europa ser criado dos outros; Santana Lopes, que ficou cá e foi o desastre que se viu."
Não gosta que digam que vive no século XIX, nem se arrepende de nada: "Queria era ter-me dispersado menos, mas houve a tentação do jornalismo e só se escrevem livros de História com 20 anos de trabalho."
Uma entrevista em que foi impossível contornar a seleção nacional e a prestação de Ronaldo.
Que país é este onde Cristiano Ronaldo é o maior herói?
Acho muito bem que ele seja um herói. É uma pessoa ultradisciplinada, muito talentosa bastante inteligente, portanto pode ser um herói. Não é um futebolista, mas uma personagem e seria admirável se estivesse a fazer uma outra coisa. Uma pessoa que tem aquela concentração no que está a fazer; aquela dedicação e inteligência, se estivesse noutro tipo de atividade seria um herói à mesma. Ele é um herói por causa disso, não porque joga muito bem futebol. Para isso há muita outra gente, que é tão boa ou melhor que ele, mas nunca chegará a ser o Ronaldo. E dizem que não se deixa contaminar quando começa o jogo por nada do que está à sua volta, que fica numa concentração absoluta no jogo. Se Ronaldo fosse um cirurgião, gostava de ser operado por ele.
Refere a falta de memória dos portugueses logo no início do livro, mas que não se podem lembrar de uma História que ninguém lhes contou. Este é um período obscuro?
Obscuro não é, porque houve quem fizesse a sua história. Quando falo de História é de uma narrativa e essa só existe parcialmente. No total, ninguém a fez, a não ser o Oliveira Martins em Portugal Contemporâneo. Depois, não houve mais ninguém.
Há outros momentos da nossa História que também precisam de outra narrativa?
A História é para mim uma forma de arte, se quisermos até um género literário, escrita por alguém que saiba escrever português. Quando pensei contar a história do século XIX começaria com as invasões francesas e acabaria com o fim da República, o 28 de Maio, talvez com alguns sucedâneos até 1933. A história que gostaria de ter escrito era a deste período: 1807 a 1833.
Sente-se frustrado por não a ter feito exaustivamente?
Sinto-me frustrado, é mesmo a grande frustração da minha vida.
Porque não a escreveu?
Um pouco por indisciplina pessoal, um pouco pelo ambiente universitário que se vivia em Portugal. Embora fosse um dos mais privilegiados nas Ciências Sociais, quem vive só da universidade passa mal, portanto as tentações para fazer outras coisas são muitas. Dar aulas ou fazer jornalismo, como foi o meu caso. E o jornalismo prejudicou-me porque teve uma importância na minha vida que nunca deveria ter tido.
Não se arrepende da sua verve agreste na imprensa?
Arrependo-me... Não em relação à minha verve, essa é a forma como penso as coisas. Arrependo-me é de me ter gasto a fazer jornalismo. Foi importante para a minha vida, se calhar para outras pessoas, mas se pudesse voltar atrás não o teria feito.
As suas crónicas e análises irritaram muita gente.
Calculo que sim.
Arrependeu-se de algum texto jornalístico?
Não em particular, gostaria era de me ter dispersado menos. Por um lado houve esta tentação do jornalismo, por outro o ambiente universitário foi muito mau durante o tempo em que estive lá. As pessoas eram muito medíocres e as ideologias dominantes não passavam de várias formas de esquerdismo completamente metafísicos e simplórios. Só se escrevem livros de História com 20 anos de trabalho. Se temos gente à volta que gosta desse género de História e espera isso de nós, então somos poupados nas maçadas burocráticas e de carreira. De resto, arrependo-me ter feito o concurso para investigador-coordenador, que é um título idiótico e uma tradução literal do maître de recherche francês que cá não tem dignidade alguma nem a sua prática tem significado. Todos os concursos portugueses são falsificados porque as várias instituições universitárias não querem competição entre si e, mesmo que agora, dizem, não seja menos assim, não acredito que se tenham tornado realistas com a espécie de corporativismo universitário que existe.

O autor enquanto secretário de estado Adjunto do primeiro-ministro e da Cultura
© Arquivo DN
Nem com a concorrência universitária internacional?
Não existe, pelo amor de Deus. Há redes de influência, há investigadores portugueses, espanhóis e franceses, que se convidam uns aos outros para congressos. Há uns que conhecem os investigadores americanos e trazem-nos cá, publicam os artigos uns dos outros em revistas e citam-se muito. É um circo.
Critica-se muito as elites portuguesas. Este livro será lido por elas?
Não sei nem nunca me preocupei com isso de ser lido ou não. O que me preocupa é se está bem escrito e este não está mau, sobretudo a primeira parte.
Prefere a primeira parte?
Sim, se tivesse reescrito o livro todo teria feito essa segunda parte ligeiramente diferente. Não mudava nada na substância, mas faria-a mais pausadamente e teria entrado mais nos pormenores e nas personalidades, também sobre a imprensa e os sítios que frequentavam - que conheço bem. Foi mau, deveria antes ter feito esta história mais alargado.
Preferia que fosse quase como um "romance"?
Não, mas para conhecer as pessoas é preciso saber o que vivem. Se fosse agora, o que veem na televisão, que acesso têm ao mundo. É preciso não esquecer que na televisão estamos a dois dígitos da América, da Inglaterra ou de Hong Kong.
Trata os personagens históricos por tu, como se estivesse naquele tempo...
Conheço-os a todos porque estudei bem essas épocas. Sei das suas carreiras, como começaram, onde estiveram, quais são as fações políticas onde militaram, as revoluções em que entraram ou se opuseram. Ou seja, são como personagens reais para mim, daí que as trate por tu.
Chama ao último capítulo A última saldanhada. É uma certa liberdade!
Não, é como eles diziam. Se calhar deveria ter posto entre aspas, porque referiam-se assim aos golpes do Saldanha. Que entrou praticamente em todos os golpes desde a Vilafrancada, um dos mais importantes pronunciamentos da época.
Que dificuldades sentiu?
Uma das coisas da História do século XIX que é difícil de transmitir ao leitor contemporâneo é que toda essa gente de que falo no livro era muito nova. Há muita gente que andava pelos 22 anos - o infante D. Miguel tinha 18 quando isto tudo sucedeu. E os outros poucos mais velhos eram, mas não se pode pôr a idade das pessoas em todas as linhas. E, observados do meu ponto de vista, de 70 e tal anos, eram mesmo muito novos.
Estes pronunciamentos militares são coisas que os jovens portugueses de hoje nunca viram.
Tivemos dois golpes militares: o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975. O 11 de Março de 1975 não é - e ainda está para se saber o que foi - e o 28 de Setembro de 1974 também não foi um golpe militar. Hoje em dia o exército está profissionalizado e acabaram os pronunciamentos nos exércitos profissionais.
Quando regressa a esta época esquece o presente ou a sua interpretação é influenciada pela vida atual?
As pessoas são inspiradas no presente e nas circunstâncias em que vivem, na história e na literatura que conhecem. Eu sou tão inspirado pela literatura como pela história que conheço - a europeia, a portuguesa, a de Espanha, a de França, entre outras -, e não é só a do século XIX. Acontece que este século é muito importante para se perceber o que se segue. Não quer dizer que ache o século XIX o mais importante, mesmo que haja umas pessoas que dizem que vivo nesse século - coisas disparatadas. Sou especialista no século XIX e li muito sobre ele, incluindo todas a literatura histórica, económica e social, que se escreveu no/e sobre esse século português. O que não quer dizer que considere este período mais importante do que outras partes do passado. Li muita história contemporânea e de vários países.

Vasco Pulido Valente em 1996
© Arquivo DN
Então porque dizem que vive no século XIX. Um pretexto para o criticarem?
Não, é mais porque quando escrevia para os jornais tentava estabelecer paralelos entre o passado e o que estava a acontecer em Portugal, exatamente porque penso que o século XIX ilumina o Portugal de hoje de um um ponto de vista diferente e convinha que as pessoas percebessem que os problemas que o país tem hoje já os teve anteriormente, bem como quais foram as tentativas para os resolver e os resultados.
Esse retrato foi em muito preocupação de Eça de Queiroz. Fez um bom retrato?
Não punha isso em termos de retrato, o Eça foi o homem que melhor compreendeu o estatuto de Portugal no mundo e a natureza da cultura portuguesa. Ele nunca viveu em Portugal para começar e isso é importante, aliás ele nunca quis viver em Portugal e escolheu aquela profissão por isso. Sempre considerou Portugal um país subordinado e a cultura portuguesa imitativa. Os Maias é o romance sobre a imitação e não sobre o destino ou o incesto. Durante todo o romance está sempre presente o problema da imitação e não faz nem escreve nada por acaso, é de uma precisão absoluta. Não tem uma virgula ao acaso, e quando descreve um jardim, um prédio ou uma estrada, é para mostrar onde está a imitação. Ora a imitação é sempre uma deformação: o Dâmaso, por exemplo, é uma deformação do Carlos; Lisboa é de Paris, as corridas de cavalos das verdadeiras corridas francesas. A conclusão é a de que a coisa imitada nunca é tão boa como a original, sempre de uma natureza inferior. O próprio Carlos imita, pois não vive como um português, mas à francesa e à inglesa.
No século XX houve algum escritor com a dimensão do Eça?
Não, nem de lá para cá, desde o Eça.
Nem José Saramago ou António Lobo Antunes?
Não, coitados, são escritores... não vou classificá-los.
Nem a Lobo Antunes?
Também não, não é classificar, nem vou falar deles.
Nunca pensou em escrever um romance?
Não, se tivesse escrito seria um livro de História. Escrevi vários livros de História, o livro de História é que não.
Chama a este Fundo da Gaveta. Ainda tem mais inéditos?
Não, eu até julgava que tinha perdido este livro, daí chamar-lhe Fundo da Gaveta.
No início, não deixa de referir o "constitucionalismo indígena". Dá-lhe muito prazer usar esta designação para definir os portugueses?
Não me dá muito prazer, de certa maneira é uma frase que qualifica muito os portugueses e as coisas portuguesas. Porque é o constitucionalismo francês, que não é o nosso, antes uma cópia de uma cópia, uma cópia do constitucionalismo espanhol que já de si era uma cópia do francês. É uma coisa que já nos chega muito deformada.
Voltemos ao termo indígena, porque gosta de chamar os portugueses assim?
Porque qualifica bastante bem Portugal. Lemos os jornais e estou a ler artigos em que reconheço de onde foram copiados em 98% dos casos. Vejo o que estão a querer imitar, desde poses na vida, culturais e artísticas. Ou seja, também aqui a são cópias de cópias de cópias.
Não há uma opinião própria no país?
Não sei, creio que há poucas opiniões próprias.
Quando tivemos a troika, o ministro das Finanças, Vítor Gaspar, não copiou o choque financeiro, inventou-o de forma radical.
As políticas em Portugal são também sempre adaptações, neste caso de teorias económicas e financeiras que nós não gerámos mas que foram definidas pela troika. Que nos impôs em parte e nós adaptamos livremente outra parte muito pequena. Tínhamos pouco espaço de manobra devido ao pequeno consentimento que a Europa nos dava para definirmos as nossas políticas, era um espaço muito marginal que continua igual, como se viu nas negociações do primeiro-ministro António Costa com a esquerda na coligação parlamentar. É sempre um pouco do que manda fazer a Europa ou a OCDE, um pouco do que a esquerda dentro e fora do PS quer. Dar um bocadinho a um e um bocadinho a outro. No essencial, as medidas que a Europa nos impõe são teorias financeiras que não foram originárias do continente, portanto lá voltamos à cópia da cópia da cópia, sem nada de original.
Nem a invenção da Gerigonça e de um défice muito pequeno?
O Mário Centeno faz as políticas do Eurogrupo, de que é presidente, e que lhe são impostas pelas instituições da Europa. Quem quer dinheiro emprestado fica dependente dos credores, já sucedia no século XIX, só que nessa época as associações de bancos que se juntavam para emprestar dinheiro a Portugal não obrigavam a uma disciplina financeira tão dura.
Não é da opinião que Passos Coelho tenha ido longe de mais?
De maneira nenhuma, acho que fez muito bem e teve muita coragem em começar a desembaraçar a vida financeira e os negócios portugueses de uma série de falsificações que estavam a intrujar toda a gente, como se tem visto entretanto.
Foi durante muito tempo fiel ao PS. Como vê o PS pós-José Sócrates e agora com António Costa?
Eu nunca fui fiel ao PS, desculpe...
Então, fiel a Mário Soares.
Isso sim, ao Mário Soares sim, eu era amigo do Dr. Mário Soares. A propósito, ele dizia-me sempre que a coisa que mais o irritava era quando me referia aos portugueses como indígenas - ficava muito irritado com isso. Era o que mais lhe custava engolir nas minhas crónicas. O Dr. Soares foi um homem que me fez muito mal pessoalmente, mas teve a generosidade de me perdoar os favores que lhe fiz.
Pode explicar essa frase?
Teve a generosidade de perdoar os favores que eu lhe fiz...
Como assim?
Ele fez-me muito mal, mas teve a generosidade de me perdoar os favores que eu lhe fiz.
Não percebo.
Não precisa de explicações. É só isto. Mas eu gostava muito dele, adorava o Dr. Soares. Como pessoa, foi talvez a mais extraordinária que conheci em toda a minha vida e talvez a única que verdadeiramente admirei.
Nem Sá Carneiro se lhe compara?
Nãããão. Gostava muito de Sá Carneiro e trabalhei muito bem com ele. Nunca tive zangas nenhumas com ele enquanto com o Dr. Soares foram bastantes. Ou ele teve comigo. O Sá Carneiro não tinha a estrutura do Dr. Mário Soares e nunca conheci ninguém em Portugal ou noutro país com a sua estatura e o charme. Era uma pessoa irresistível - não era encantador, era irresistível. Não era possível resistir-lhe ou, pelo menos, eu nunca lhe consegui resistir. Chegava ao pé de mim, dizia-me três coisas e, mesmo que estivesse muito eriçado contra ele, passava-me logo tudo.
Nunca houve ninguém que o seduzisse como Soares?
Não chamaria seduzir.
Convencer?
Era uma pessoa que em certos capítulos me dava a confiança absoluta de que enquanto tivesse importância política em Portugal haveria liberdade no país. Mesmo antes do 25 de Abril, tive confiança de que enquanto Mário Soares estivesse na oposição, ela seria democrática em Portugal. O Dr. Soares, sempre o chamei assim, ou por Sr. Presidente, fórmula que ele também não gostava pois achava que eu estava a pôr-me em bicos dos pés.
Porque não o tratava de forma mais íntima?
Primeiro, porque ele não me autorizava; em segundo lugar, conhecia-o desde os 4/5 anos e lembro-me dele e das suas gargalhadas. Mais tarde, ia ver um tio à prisão de Caxias e tornava a visita muito mais agradável. Foi a única pessoa que encontrei em toda a minha vida verdadeiramente impressionante.

Vasco Pulido Valente em 1996
© Arquivo DN
Pode-se dizer que o político mais importante para si?
Não foi para mim, foi para todo o país.
Mesmo que uma parte da população nunca o tenha desculpado pela descolonização?
Isso é um disparate que tantas vezes foi explicado à população. Quando o Dr, Mário Soares chegou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros já o coronel Fabião estava aos abraços com o PAIGC e o Otelo aos abraços à FRELIMO. Não havia negociação possível. Quem fez a descolonização não foi o Dr. Mário Soares mas o MFA. Ele não queria fazer aquela descolonização, e foi assim porque o exército português se desfez em 48 horas em Angola, Moçambique e Guiné. Neste último fomos mesmo ao encontro das tropas inimigas e confraternizámos poucos dias após o 25 de Abril. Como aconteceu no norte de Moçambique e quase imediatamente em Angola.
Como vê o PS desde após o tempo de Mário Soares, com Sócrates e Costa?
O PS era outro, mesmo para ele pois estimava o PS. Sócrates era um zé-ninguém, foi feito secretário geral do PS por um diretor de programas da RTP e os dirigentes do partido acharam que não se deviam opor porque ele era popular e isso trazia votos. Foi uma irresponsabilidade da direção do PS e ao chegar a primeiro-ministro comportou-se como um irresponsável. Para mim não há mistério, até penso que Sócrates não teve a noção do que estava a fazer porque a inconsciência era tanta. Eu protestei nos jornais sobre algumas coisas, mas não fui acompanhado por ninguém.
Foi uma ilusão coletiva?
Uma irresponsabilidade, tal como no PSD quando este partido produziu dois chefes como Durão Barroso e Santana Lopes. Puros arrivistas! O Barroso lá foi para a Europa ser criado dos outros, mas o Santana ficou cá e foi o desastre que se viu. O Sócrates concorreu contra Santana e só podia ter ganho. Nunca teria ganho a uma pessoa responsável do PSD. Era um irresponsável contra outro e foi um tempo muito mau, pois não foi só o PS que produziu erros.
E agora com a liderança de Rui Rio e António Costa?
É muito mau, mas não tem comparação. Estes senhores podem ser medíocres, e são um e outro, mas têm sentido das responsabilidades. Não são parvos como eram aqueles dois.
Tendo o PSD tido um ideólogo como Sá Carneiro porque é que a ideologia do PSD se foi perdendo?
O Sá Carneiro não era um ideólogo, antes um grande político, que percebeu - nisso concordámos os dois - que era preciso para a sobrevivência do país que a direita pudesse governar.
A morte de Sá Carneiro foi um atentado ou um acidente?
Eu acho que foi um acidente. O Sá carneiro era uma pessoa que tomava riscos irresponsavelmente. Eu não me meteria num avião que tinha saído das oficinas ou que tivesse de esperar meia hora para estar reparado. Esperava por um avião de carreira; se não houvesse, metia-me num automóvel. Nunca faria o que ele fez. Também nunca seria capaz de guiar como ele. Andei essas estradas fora centenas de quilómetros e vi que guiava de uma maneira desaforada. Tomava riscos incríveis e eram estradas estreitinhas as do Dr. Salazar, com árvores dos dois lados a cada dez metros. Se saíssemos da estrada, batíamos nelas e estávamos mortos.
Lembro-me que escreveu na revista K um ensaio sobre Marcello Caetano. Se essa revista ainda existisse escreveria sobre Marcelo Rebelo de Sousa? E recordo que o título era "Marcello o maior"...
Não, esse não era o meu título. Isso foi o Miguel Esteves Cardoso. Ralhei muito por causa desse título, que era tão irresponsável como o Miguel Esteves Cardoso. Ponto final. É uma das pessoas mais irresponsáveis que conheci em toda a minha vida.
Mas escreveria um ensaio sobre este Presidente?
Não. Já disse tudo o que tinha a dizer sobre ele, é um presidente implausível. No outro dia estava a vê-lo na televisão e estava abraçar um boneco do Campeonato do mundo na Praça Vermelha de Moscovo. Eu pensei: um senhor de idade, com uma situação na vida, de fatinho e gravata, a abraçar um boneco na Praça vermelha. Isto faz algum sentido para alguém? Claro que a seguir desmaiou - já desmaiei várias vezes de velhice -, mas aquilo era extraordinário. Em que espécie de História ou de situação política é possível imaginar um professor de Direito, que tem quase 70 anos e cabelos brancos, desatar aos abraços a um boneco. Talvez tenha tinha tido uma razão especial, talvez fosse um boneco português. Nem sei se foi preparado ou não. Não é real!
O grande sonho dele será um bloco central?
Estou muito pouco interessado na situação política atual. Só me interessam as personagens, ou só estou na política na medida em que é reveladora das personagens.
Esse era o caso de Marcello Caetano?
Sim, revelador da personagem. Fui aluno dele - do Caetano, não deste - em Direito Administrativo. Não tenho opiniões sobre ele, escrevi um estudo a explicar quem era aquela personagem. Que foi muito importante para toda a gente do meu tempo.
Acompanhou campanhas eleitorais de Álvaro Cunhal, até foi esperá-lo ao aeroporto quando regressou do exílio. Porquê?
Fui esperar os dois, Mário Soares e Cunhal. Porquê, porque os meus pais também foram.
Os seus pais eram do PCP.
Naquela altura já não eram. Tinham sido. A minha mãe talvez fosse ainda simpatizante, mas o meu pai não. A minha mãe votou PS sempre e o meu pai começou a votar PS como toda a gente, depois passou para o PSD. Votou primeiro AD e ficou a votar PSD.
Qual a sua opinião sobre Cunhal?
Fiz duas campanhas eleitorais com ele e sabia quem eu era. Tive poucas conversas com o Cunhal, ele chamava-me de vez em quando, como uma vez no Entroncamento, onde visitou uma fábricas e os operários voltaram-se ostensivamente de costas para ele. Eu ia perto e disse-me: "Isto é uma tristeza. Tínhamos toda esta gente e agora ninguém." Depois, não dizia mais nada, continuava a andar. Ele, de vez em quando voltava-se para mim e dizia-me coisas muito inesperadas. A única vez em que esteve mais perto de se descoser comigo, mas acabou por não o fazer, foi quando me perguntou o que eu tinha achado do discurso dele em Avis. Eu respondi: Oh senhor doutor, não achei nada, Andei pelo meio das pessoas no comício e toda a gente estava preocupada porque o senhor estava mais magro ou não era bem como na televisão. Ninguém ouviu, nem eu.
Confessa que este livro é "flagrantemente duvidoso". Quer espicaçar o leitor?
Não, é que deitei fora os ficheiros e não sabia quais as fontes da investigação. É duvidoso por não poder reconstituir mais do que o texto.
Andam a escrever uma biografia sobre si...
... Não anda nada. Publicou aquilo no Expresso porque já estava escrito. Foi o que lhe saiu e assim ganhou uns dinheiros. Não está interessado em mais nada. Nunca esteve.
A sua vida cabe numa biografia?
Todas cabem e, como hoje em dia, há uma indústria biográfica toda a gente escreve biografias. Só há vidas ignoradas por falta de fontes.
No seu caso há as suficientes?
Creio que não, só as coisas que publiquei e alguns mexericos. Não gosto de guardar coisas e de vez em quando faço umas limpezas. Foi numa delas que este livro desapareceu, como muitas outras coisas. Deitei foras as cartas de família...
Isso para quem gosta de história não é criminoso?
Não, quando a minha mãe morreu, a minha irmã que vive no Brasil veio cá e perguntei-lhe o que queria fazer com as cartas. Ela disse-me para decidir. Eu li duas ou três e senti-me muito mal por entrar na intimidade dos meus pais ou na da deles para com os amigos. Não gostei, achei que era uma espécie de violação e uma indecência. Não havia interesse público naquilo. Hoje em dia as correspondências privadas são muito apreciadas por historiadores e sociólogos, mas não há nenhuma razão para essa invasão de privacidade. São muito poucos os resultados práticos.
Quando fez essa limpeza não houve uma carta sua que fosse importante para uma biografia no futuro?
Acho que não. Guardei algumas cartas porque tinham interesse histórico: do meu avô paterno, o avô Correia Guedes, para João Franco e vice-versa. Onde diziam: "Que bom o tempo em que éramos tão infelizes!" Os dois foram perseguidos pela República.
Acredita em Deus?
Não.
Não...
Não sou ateu militante, sou ateu, sempre fui.
Convidou Paulo Portas para apresentar o seu livro. Qual a razão?
Porque sou amigo dele. Sei que é um leitor muito especial e que lê muito, pois discutiu sempre comigo os livros que estava a ler ou que tinha descoberto. Fomos sempre muito próximos nessa matéria e gosto muito da maneira como ele lê. Além disso leu muito.
Se tivesse que escolher dois momentos da sua vida qual seria o melhor e o pior?
É difícil... O pior até agora é muito fácil: foram os dias que passei nos cuidados intensivos da última vez que estive doente. Muito maus. Não havia luz do dia, era uma espécie de caverna, esticado numa cama sem me poder mexer. O melhor momento da minha vida... Foram tantos. Não há um que se destaque, talvez as alegrias políticas - das privadas não quero falar. Um momento muito alegre na minha vida foi a vitória do Dr. Soares nas primeiras presidenciais.
O livro tem muitos protagonistas e em cenário de fundo o Zé Povinho. Esta parte da sociedade ainda existe nestes termos?
Nos meus livros o Zé Povinho nunca está em fundo, isso é uma invenção de condescendência do povo que não tenho. Figurar o povo com aquelas barbas e como os saloios dos arredores de Lisboa, que é a ideia que os pequeno burgueses da capital têm do povo, não é a minha visão. Tinha-a o Rafael Bordalo Pinheiro, mas isso não existe. Há várias espécies de povo: camponeses, trabalhadores urbanos, mas não o Zé Povinho. É uma figuração de atitude das classes que se julgam educadas para com uma população que não percebem.
Refiro-me àqueles que apoiavam as vitórias e derrotas dos constantes levantamentos.
Mas, atenção, eu nunca digo Zé Povinho, nem povo, antes o povo urbano ou a plebe urbana.