Médicos fazem exames desportivos à pressão e a troco de 2,3 euros por consulta
Há 624 mil atletas federados e todos precisam de fazer um exame médico. Um filão para empresas privadas que chegam a oferecer apenas 2,3 euros por exame aos clínicos. Médicos denunciam que está em causa a segurança dos atletas.

Alberto Prata, médico da seleção nacional de futebol de praia, defende que um exame é uma consulta e que deveria ter no mínimo 20 minutos, para proteção e segurança do atleta (na foto com o Dr. João Paulo Delgado).
© Orlando Almeida/Global Imagens
No desporto federado é obrigatório a realização de um exame médico desportivo e o número de atletas aumenta todos os anos. Em 2017, eram 624 001, segundo os dados do Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ), quando em 1997 estavam inscritos apenas 271 470. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) não consegue dar resposta aos pedidos de exames e surgiu assim uma oportunidade de negócio: algumas empresas começaram a vender este serviço em pacote (por quantidade de atletas examinados ou juntamente com outros serviços) e a oferecer aos médicos 20 a 30 euros à hora para fazerem essas consultas. Só que não explicam aos clínicos que têm de consultar mais de dez pessoas para ganharem esse valor. Este é um daqueles casos que todos conhecem, mas ninguém atua, denunciam os especialistas em medicina desportiva, salientando que se trata da segurança do praticante.
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Os exames médico-desportivos são realizados quando um atleta se inscreve como federado e, depois, anualmente, no mês do aniversário. Quase um terço (176 349) pratica futebol e são a maior fonte de rendimento. "O que dá mais dinheiro são as escolinhas", deixou escapar a responsável de uma empresa que realiza esses exames, para logo emendar: "As escolinhas é que dão mais atletas."
Os clubes de futebol podem ter equipas a partir dos seis anos e as empresas vendem pacotes de exames. São "clínicas ambulantes", deslocam-se aos locais. Contactam jovens médicos, num sistema de passa-a-palavra (não divulgam um contacto telefónico e algumas nem um site), pagando-lhes quantias irrisórias.
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A Despormed, por exemplo, promete 23 euros à hora aos clínicos (a quantia cai para metade em relação a outros técnicos de saúde, como enfermeiros). Mas esse valor só é pago se o médico examinar, pelo menos, dez atletas. Isso percebeu um médico no dia em que fez os primeiros exames, uma vez que as condições não foram claras no início, como contou ao DN. Se a fasquia dos dez não for alcançada, então a empresa só paga 2,3 euros por exame. Para chegar aos 23 euros/hora, o médico tem em média seis minutos para fazer o exame, quando o tempo para uma consulta de medicina desportiva varia entre 20 e 30 minutos.
Rui Braga, o gestor e proprietário da Despormed, diz que o número de exames realizados depende de cada médico e se está, ou não, acompanhado de outro técnico. "Oferecemos 23 euros à hora mas não exigimos que os médicos vejam 15 ou 20 atletas, isso depende muito da dinâmica do médico e ele é que é o responsável pelo exame. Há quem veja sete ou oito atletas e quem veja 12 ou 13 numa hora. Os nossos médicos seguem os critérios do IPDJ", argumenta. E critica: "Há clínicas que cobram aos clubes 5 euros por exame e, com esse valor, têm de pagar aos médicos, aos técnicos e ganhar a sua parte. Com isso, estão a destruir completamente a imagem da medicina desportiva.". A empresa tem sede em Vila Nova de Gaia e a maior parte dos seus clientes estão no Norte.
Alberto Prata, interno de medicina desportiva e médico da seleção nacional de futebol de praia, a atual campeã mundial, explica ao DN os vários passos necessários naquilo que deve consistir uma consulta de medicina desportiva: "O médico deve avaliar as condições físicas do atleta, a sua evolução física, a adequação dos exercícios e da modalidade à idade, se tem, por exemplo, doenças osteoarticulares (articulações). A consulta tem três fases: história clínica, exame físico em que se ausculta, mede a pressão arterial, a frequência cardíaca, etc.; meios complementares de diagnóstico (o médico analisa o eletrocardiograma já feito pelo atleta); e, se indicado, outros exames específicos de acordo com a modalidade praticada, da condição física do atleta e do nível de competitividade, como a realização de uma prova de esforço, análises clínicas, etc."
Dez cêntimos ao quilómetro
A Performed, outra empresa do setor, paga 3,5 euros por exame. A diretora-geral, Rita Alexandre Ribeiro, não fala em valores individuais, apenas refere que pagam as deslocações e as portagens. Quanto ao corpo médico, sublinha que o diretor executivo e o diretor clínico da empresa são médicos e que atestam a qualidade dos exames. Quando estes são realizados fora da área de residência dos técnicos de saúde, pagam dez cêntimos ao quilómetro, muito abaixo dos 36 cêntimos/km estipulados na tabela para o setor público (Decreto-Lei n.º 137/2010 ). Rita Ribeiro revela que a Performed tem 20 mil atletas e prometeu que o diretor executivo iria responder às perguntas do DN, o que não aconteceu até ao fecho desta edição.
Alberto Prata também foi aliciado por essas empresas, mas percebeu que não lhes davam meios para fazer um exame em condições. "Para um médico, 30 euros à hora pode ser bom, mas depois entram miúdos de dois em dois minutos no consultório e quem aceita fazer esse exame não pensa no nível de responsabilidade em que se está a envolver. Se houver um problema de saúde com o atleta, a responsabilidade é do médico. Enquanto não existir um compromisso por parte dos médicos que estão a fazer um ato clínico sem condições, é um problema difícil de resolver, até porque não há controlo", denuncia. O especialista sublinha que um exame desportivo "é uma consulta médica". O tempo padrão indicado pelos colégios da especialidade da Ordem dos Médicos para a consulta em medicina desportiva varia entre 20 e 30 minutos (DR, Regulamento n.º 724/2019).
Um dos problemas que arrasta a situação é o facto de os médicos que não concordam com o esquema acabarem por desistir e não apresentarem queixa. O DN contactou as estruturas sindicais e profissionais que dizem não ter denúncias sobre esta matéria.

Maria João Cascais, presidente do Conselho da Especialidade de Medicina Desportiva da Ordem dos Médicos e membro do Comité Olímpico, denuncia a situação há mais de seis anos e lamenta que nada tenha sido feito.
© Orlando Almeida/Global Imagens
Maria João Cascais, presidente do Colégio de Especialidade de Medicina Desportiva da Ordem dos Médicos (OM), lembra-se da mãe de um atleta reclamar junto da Ordem mas não ter avançado com a queixa. A dirigente diz que denuncia a situação há mais de seis anos junto de vários organismos, incluindo à diretora-geral de saúde e aos seus bastonários, e nada é feito.
"Já ouvimos de tudo, exames feitos em carrinhas, pagar aos médicos dois euros por exame, etc., sem perceberem que o que está em causa é a segurança do atleta. A medicina desportiva é fundamental para a prevenção das doenças e diminuição da medicação em doenças crónicas, por exemplo. Os clubes, alguns com dificuldades financeiras, entregam a indivíduos não especialistas, por vezes a não médicos, a avaliação destas crianças e adultos. Como é possível alguém fazer 20 exames numa hora?", questiona. A denúncia tem ficado sem resposta, nomeadamente a nível da fiscalização. Resta ao Colégio aconselhar os clínicos a recusar esses atos médicos.
A médica, especializada em Patologia Clínica e Medicina Desportiva, defende que uma solução para acabar com este negócio seria a realização deste exame online, em que o médico teria de colocar a cédula e preencher os itens enquanto observava o atleta. Não só tinha de seguir todos os passos exigidos nestes exames como dava a indicação do tempo de cada consulta. "Não é a solução ideal, mas ajudava", diz a dirigente. Informa que essa plataforma já foi criada no Centro de Medicina Desportiva, mas "é preciso que funcione".
Entre as várias atividades e clínica privada ao longo da carreira, Maria João Cascais é membro do Comité Olímpico de Portugal (presidiu à comissão médica dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro) e da Autoridade Antidopagem de Portugal (AdoP).
1240 profissionais da área
Alberto Prata será, dentro de meses, um dos 140 especialistas em medicina desportiva no país. E há mais 1100 com a pós-graduação. Lamenta que "os clubes, e também os pais, vejam a exigência de um exame como uma burocracia, como um formulário que se tem de preencher", em suma, uma chatice. "Não veem o seu real valor. É a única forma de ter a certeza de que a pessoa está em condições para a prática desportiva e que é fundamental para a proteção e segurança do atleta", sublinha.
Maria João Cascais salienta que a maioria dos praticantes não vão ao médico e critica as seguradoras por não comparticiparem os exames. Alerta: "Apenas 5% a 10 % dos exames são bem feitos. Estamos a perder a deteção de problemas cardíacos; a prevenção de doenças infantis, como a obesidade e a diabetes; a prevenção de lesões."
Os dois médicos lamentam esta situação, para mais num país que foi pioneiro a exigir exames médicos desportivos. A especialidade iniciou-se em 1982 e, na Europa, só a Bélgica, Holanda, Polónia e Inglaterra têm esta consulta. A partir de 1982, os médicos, normalmente ortopedistas, clínicos gerais e fisiatras, faziam um exame à Ordem para se especializarem em medicina desportiva. Os primeiros internos de formação específica, programa curricular da OM, saíram em 2013. E abrem poucas vagas - neste ano abriu uma no Hospital Amadora-Sintra. As pós-graduações iniciaram-se em 1990.
Uma vez criada a especialidade, pretendia-se que os exames aos atletas fossem realizados apenas por estes especialistas, mas o facto de serem menos de 1250, fez que a prática fosse aberta a toda a classe médica. "Os exames de medicina desportiva podem ser feitos por qualquer médico, exceto se os atletas tiverem estatuto de alto rendimento ou se requisitarem dupla subida de escalão. O médico tem de ver se um desporto é adequado às características morfológicas da criança, se esta sofreu alguma doença, se toma medicação, etc.", explica Maria João Cascais. Entende que, além de um eletrocardiograma, deveria ser exigido um ecocardiograma, "no mínimo".
O principal problema no entender de Alberto Prata é a falta de resposta pública, do SNS e do Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ). Cresceu o número de atletas, mas a realização dos exames médicos desportivos deixou de ser feita em Coimbra, restringindo-se, agora, aos centros do IPDJ de Lisboa e do Porto.
Além das clínicas privadas que também fazem aqueles exames, surgiram empresas privadas só para estes serviços. Contactam os clubes e apresentam preços baixos para angariar clientes. "Vão buscar médicos recém-formados, para eles são uns trocos extra e entram no esquema, mas não percebem que estão a vender um ato médico por um preço muito baixo. O esquema que está montado parece uma fábrica de salsichas, os miúdos entram no consultório já sem T-shirt. Consultar dez ou vinte atletas numa hora é impossível. Estas empresas não estão interessadas na qualidade mas na quantidade", critica Alberto Prata.
Entidades respondem com a lei ou nem respondem
Os exames de medicina desportiva são tutelados pelos ministérios da Educação e da Saúde. O DN questionou o Instituto Português do Desporto e da Juventude sobre esta matéria, que remeteu para as estatísticas, números não atualizados desde 2017. A Direção-Geral da Saúde, a que Maria João Cascais denunciou a situação, argumentou que as empresas privadas são da responsabilidade da Entidade Reguladora da Saúde. Esta remeteu para a lei: "Os estabelecimentos onde sejam prestadas consultas de medicina desportiva estão sujeitos a registo na ERS, devendo ser identificados os profissionais habilitados para tal atividade." Não há referência às condições em que são realizados os exames, o valor que é pago aos técnicos ou denúncias. E a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde não respondeu.