1. Perante a tragédia da Caixa, vamos passar uns meses a discutir os seguintes axiomas:.- Um banco público não serve para nada e deve ser vendido..- Em tudo o que Estado se mete, faz mal..- Portugal não aprende e é ingovernável..Na verdade, vai ser difícil de rebater estas proposições. Talvez nenhum caso como este desacredite tanto a política e a democracia..A corrupção de um primeiro-ministro (Sócrates) é um risco que a democracia corre. Já a reiterada má gestão do banco do Estado é uma falha sistémica e impune - uma cultura de governança de um país onde as empresas de auditoria são venais e a própria autoridade máxima de vigilância (Banco de Portugal) age sempre tarde demais. Quem sobra para regenerar este sistema com credibilidade?.A Caixa era uma ilusão da esquerda - minha também. Supostamente gerida por pessoas ultracompetentes, vindas das melhores universidades, dos MBA e com decisões baseadas no implacável Excel. Mas esteve quase a falir. Obviamente, o populismo germina neste ambiente. É aqui que entra a rábula de um sistema impoluto ideal (não-humano), normalmente comandado por um Salazar humilde e tacanho, na qual repousam depois as esperanças dos eleitores trumpo-bolsonaristas que por cá também abundam. Mas há poucos argumentos para contrapor. Porque, na verdade, a Caixa é pior que o BES..No BES, Salgado alegadamente corrompia com dinheiro privado quem mandava nas decisões públicas. Na Caixa o dinheiro público circulou com largueza por uns grupos estratégicos que recebiam as boas palavras de quem manda. Sócrates, claro, mas não apenas. A Caixa sempre foi o el dorado dos ex-ministros e dos grupos importantes, das avenças, dos lugares nas assembleias gerais e conselhos fiscais etc.. Nestes ambientes, prospera o "yes man" de topo sempre sem qualquer responsabilidade individual. Hoje, com tudo à vista, fica a nacionalização de uma conta sem fim à vista e um desespero infinito pela fragilidade que isto provoca à democracia..2. O ESTADO. Recordemos que Pedro Passos Coelho andou durante algum tempo a lançar a ideia de privatizar a Caixa. Como se sabe, para ele não havia essa ideia, antiga, da propriedade nacional. Passos Coelho tinha razão em querer vender tudo? Os estrangeiros que façam uma gestão da coisa como deve ser... Quem acredita que Portugal é incompetente para gerir os seus ativos estratégicos tem maior probabilidade de ganhar na bolsa de apostas..A verdade é que é difícil atribuir crédito em Portugal - à exceção do crédito à habitação onde o risco tem pelo menos o imóvel como garantia. O drama bancário é o de que a nossa economia não descola no grosso do pelotão, as PME. O risco é sempre elevadíssimo, dada a nossa pequenez de mercado e dificuldade em alavancar para outro o plano global. Depois, não temos capital: a taxa de endividamento global do país ronda os 700 mil milhões de euros (entre dívida pública e privada)..Portanto, que bons argumentos temos para não vender a Caixa? Basta a importância da decisão nacional? Mas foram as "decisões nacionais" para "campeões nacionais" e outros que tais que levaram o banco público quase à falência...!!!.Esta incompetência brutal de gestão na Caixa é uma agressão grave à coisa pública mais importante que temos em Portugal: o Serviço Nacional de Saúde (SNS). A Lei de Bases da Saúde, vetada pelo Presidente da República, não é um tema de segundo plano. Neste ambiente de desintegração é difícil defender o que quer que tenha a palavra público por perto..Só quem não conhece como se despacham doentes problemáticos dos hospitais privados para os públicos é que pode ter ilusões. E a ideia de que os hospitais privados são melhores ou tudo se resolve com seguros é absolutamente irreal. No entanto... basta-nos um razoável serviço no SNS, com custos galopantes, para garantir que ele continue essencialmente público e inatacável?.Com o maior desastre público chamado Justiça, a única área de absoluta excelência que existe em Portugal no setor público é... a da cobrança de impostos. Entre greves e aumentos salariais dia sim/dia não, não vai ser fácil a sociedade portuguesa continuar a achar que a esquerda deve manter a maioria na assembleia depois de outubro. A conta está alta demais..3. PORTUGAL. A conclusão mais dolorosa deste processo é a da incompetência nacional como matriz do problema. Talvez haja, no entanto, uma nuance que deva ser sublinhada: incompetência esmagadora sim, mas das elites, sobretudo financeiras e políticas. (Lá está, de novo um território próspero para o populismo)..Olhando à lupa, percebe-se que o Portugal exportador é a mais preciosa âncora de funcionamento do país; e sim, há uma nova geração capaz de lançar novos projetos; há portugueses a singrarem pela sua capacidade trabalho, adaptação e ideias, fora de Portugal ou cá dentro, em grupos bem geridos. Fomos capazes de refazer o turismo e tornar o país num caso de sucesso mundial. E ainda não estragamos tudo do ponto de vista ambiental. Mas, a verdade é que a Caixa prova que não somos capazes de tomar conta do Estado, ou seja, de nós próprios, coletivamente. E esta dejávu, quase oito anos após a chamada da troika, é um desastre para quem acredita que Portugal pode escapar ao populismo. Ele já cá anda. Contra os "corruptos". Contra a imigração. Contra a Europa. Contra este Portugal sem consequência e a favor de um Portugal imaginário, nacionalista e irreal..Este populismo inevitável recebeu uma Caixa cheia de trunfos. Se a economia afundar, ficaremos politicamente numa situação ingovernável. Oxalá não aconteça até às eleições de outubro.