Numa das salas de reuniões da Infraestruturas de Portugal (IP), o departamento de planeamento estratégico apresenta ao conselho de administração da gestora ferroviária nacional um estudo elaborado em conjunto com a consultora tecnológica suíça SMA. Nove pessoas participam na reunião, entre membros da IP e da SMA. O vice-presidente da IP para a área ferroviária, Carlos Fernandes, está no topo da mesa em representação do conselho de administração e assiste à apresentação preparada pelo filho, que está na empresa desde 2020 após concurso público. A reunião foi tornada pública através dos canais internos da IP.A IP trabalha com os suíços da SMA desde 2020. Em pouco mais de quatro anos, além de dois contratos de licenciamento de software, já foram assinados três acordos relativos à exploração da rede ferroviária nacional. O mais recente contrato data de novembro do ano passado e refere-se ao desenvolvimento de um plano diretor para a rede ferroviária tendo em conta os investimentos na alta velocidade e a construção da Terceira Travessia do Tejo.Com a relação familiar na mesa de reuniões, levantam-se questões legais e éticas. O ponto 7 do artigo 22.º do Estatuto do Gestor Público refere que o gestor “deve declarar-se impedido de tomar parte em deliberações quando nelas tenha interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa ou ainda quando tal suceda em relação ao seu cônjuge, parente ou afim em linha reta ou até ao 2.º grau em linha colateral ou em relação com pessoa com quem viva em economia comum”.O conselho de administração deu importância à apresentação do estudo, tendo indicado o vice-presidente para a reunião. No entanto, além do presidente e deste vice, o conselho de administração da IP também conta com mais uma vice-presidente e duas vogais. O DN perguntou, por isso, o que impediu que tenha sido escolhido outro elemento da administração para evitar potenciais conflitos. Fonte oficial da IP alega que a reunião teve “caráter expositivo” e que “não acarreta qualquer tipo de constrangimento ou conflito da natureza identificada, não assumindo o membro do conselho de administração neste âmbito quaisquer ações hierárquicas sobre os demais participantes”. Pai e filho delegaram na empresa explicações sobre a reunião. .João Moreira Rato: Temos de ter mecanismos que protejam os subordinados dos líderes”. O DN pediu a dois juristas especialistas na área de governação para analisarem a situação de forma abstrata, sem identificação de nomes, para promover uma análise mais isenta. “Não há evidência de deliberação, pelo que não encontro problemas legais”, refere um dos especialistas. No entanto, deixa um recado: “O bom senso recomenda que as pessoas tenham cuidado. Não é positivo haver pessoas de família envolvidas”.Uma outra jurista nota igualmente que a reunião “não era deliberativa”, pelo que “não se colocariam temas de conflitos de interesses”. Caso a reunião fosse para tomar uma decisão, o administrador poderia participar na discussão “mas não se admitiria o seu voto”.No entanto, “do ponto de vista da gestão da reputação e das melhores práticas, tratando-se de uma empresa pública, talvez fosse prudente não haver uma situação destas”, conclui a mesma especialista.No Código de Ética, a empresa que gere as redes de estrada e caminhos-de-ferro refere: “Os colaboradores do Grupo IP que tenham entre si relações familiares ou análogas não devem exercer a sua atividade profissional em relação hierárquica ou funcional, devendo reportar superiormente tal facto e colaborar com a empresa na tomada de medidas necessárias para suprimir tal situação.”Ao DN, a gestora de infraestruturas garante ter conhecimento da relação de parentesco e garante que o seu vice-presidente “não exerce poder de direção” sobre este trabalhador, “não lhe dirigindo, nomeadamente, direta ou indiretamente, quaisquer comandos ou avaliações”. Fonte oficial refere ainda que o filho do vice-presidente da IP está numa direção da empresa tutelada pelo líder da gestora de infraestruturas, Miguel Cruz.Opinião diferente têm três especialistas na área da transparência contactados pelo DN e que avaliaram o caso neste prisma. “Não me parece estar a ser cumprido o código de ética. Nesta reunião, quem avalia a proposta como é que garante a independência? A separação entre pai e filho não pode ser meramente formal. Quem garante aos contribuintes que as decisões são tomadas de forma independente?”, sinaliza João Moreira Rato, líder do Instituto Português de Corporate Governance, associação que promove as boas práticas de governo societário.“O simples facto de um membro do conselho de administração participar de uma reunião em que um familiar direto desempenha papel relevante já pode ser interpretado como um contexto de influência indireta ou de conflito de interesses potencial, que deve ser evitado, e a dita relação hierárquica e transversal acima mencionada”, assinala Susana Coroado. A investigadora na área da transparência assinala que a presença do pai “pode criar um ambiente de favorecimento ou constrangimento e resultar em riscos reputacionais e num sentimento de imparcialidade, sobretudo junto dos demais trabalhadores da empresa”. Para a ex-presidente da associação Transparência e Integridade, essa presença pode, por exemplo, “constranger o superior hierárquico direto do filho ou os colegas para fazer críticas negativas ou rejeitar a proposta. Ou seja, pode haver uma sensação de favoritismo, mesmo que não exista interferência direta”.O consultor na área da transparência, João Paulo Batalha, vai mais longe: “Se pai e filho estão a participar na mesma reunião, sendo uma reunião de trabalho e não um encontro protocolar, ou um evento de convívio entre funcionários, fica óbvio que estão a trabalhar juntos. De uma forma ou de outra, o filho está a trabalhar numa área que implica diretamente com os pelouros do pai, razão pela qual participam na mesma reunião de trabalho. Sendo esse o caso, faz pouca diferença que o pai não seja superior hierárquico do filho, porque a proximidade se torna inescapável e gera um óbvio conflito de interesses”.O também antigo presidente da Transparência e Integridade defende que a empresa “explique, independentemente das relações de hierarquia funcional que estiverem formalmente definidas, em que projetos ou atividades o pai e o filho estão a trabalhar, como se processa a relação profissional entre ambos (cuja existência parece agora indesmentível), e que medidas tomaram, se alguma, para gerir, no dia-a-dia concreto da empresa, o inevitável conflito de interesses”.Os ministérios das Finanças e das Infraestruturas têm de nomear nas próximas semanas um novo conselho de administração para a IP. O atual elenco completou o mandato no final do ano passado, depois de ter tomado posse em agosto de 2022 por nomeação dos então ministros Fernando Medina (Finanças) e Pedro Nuno Santos (Infraestruturas). Miguel Cruz apenas entrou na IP para o mais recente mandato. Carlos Fernandes está na administração da empresa desde agosto de 2016 enquanto vice-presidente para a área ferroviária.