IA no Setor Financeiro: Entre a regulação e o "humanizar dos bancos"
A Inteligência Artificial é uma força transformadora que está a redesenhar a forma como os bancos operam, interagem com os clientes e se preparam para o futuro. Esta foi a tónica dominante de um debate da manhã desta segunda-feira da Money Conference, iniciativa do Diário de Notícias, em Lisboa, num painel, composto por Pedro Ferreira Malaquias, sócio da Abreu Advogados, Madalena Talone, administradora executiva da Caixa Geral de Depósitos (CGD), Afonso Fuzeta Eça, administrador executivo do BPI, moderado por Nuno Vinha, jornalista e diretor adjunto do DN. Oportunidade para falar nos desafios da regulação, nas oportunidades de inovação e no impacto humano desta tecnologia.
Durante o debate, Madalena Talone revelou que a Caixa Geral de Depósitos está na iminência de lançar uma nova assistente virtual baseada em IA generativa. Esta ferramenta, que já se encontra em fase de testes internos com colaboradores e promete expandir as capacidades da assistente virtual já existente na aplicação móvel da CGD.
"Aquilo que estamos agora a lançar traz algumas competências mais de esclarecimento de dúvidas ou de apoio dos clientes na subscrição de produtos com alguma informação mais detalhada e mais dirigida às perguntas que eles possam ter, baseada já em Inteligência Artificial Generativa", explicou Talone.
A administradora executiva da CGD fez questão de frisar as medidas de segurança e controlo implementadas para mitigar os riscos associados à IA generativa. A assistente opera exclusivamente com base em informação controlada pela Caixa, garantindo que "não dá uma resposta com base em qualquer informação que possa estar disponível, nomeadamente, na internet". Além disso, a CGD tem investido em "guardrails", mecanismos de proteção para assegurar que as respostas são adequadas e respeitam os princípios da instituição.
A fase de testes internos incluiu, na passada sexta-feira, um teste invulgar: 120 colaboradores foram convidados a tentar "quebrar a assistente", procurando que esta fornecesse informação incorreta ou respondesse a temas sobre os quais não deveria. Embora reconheça que há ainda algumas questões a "limar", o processo reforça o compromisso da CGD com a robustez e fiabilidade da solução antes do seu lançamento público.
A necessidade de regulação
A discussão aprofundou-se na complexidade da regulação da IA, um tema central para a sua adoção responsável. Pedro Ferreira Malaquias, da sociedade Abreu Advogados, descreveu as diferentes abordagens globais. A escola americana, segundo Malaquias, baseia-se num modelo de mercado livre, com diplomas como o Communication Distance Act, que permite às plataformas da internet receber conteúdos sem serem responsabilizadas. Em contraste, a Europa adota um "Risk Model Approach", que visa regulamentar os riscos da IA através da sua catalogação. Embora se tenha debatido se este modelo "cortaria a inovação" devido aos custos de regulação, Malaquias argumentou que o mercado europeu, mais fragmentado, exige uma abordagem diferente e que o balanço entre a não-regulação e uma regulação atenta a princípios fundamentais "vale a pena". Como exemplo de sucesso, apontou a experiência do RGPD que, na sua opinião, "só trouxe benefícios para os consumidores". O Reino Unido, por sua vez, opta por um "specific base approach", aplicando três princípios – fairness, explicabilidade e transparência – a setores específicos.
O regulamento da IA europeu, detalhou Malaquias, estabelece uma "espécie de pirâmide" de práticas. No topo, encontram-se as práticas "absolutamente proibidas", como o controlo biométrico das pessoas ou a manipulação dos conhecimentos das pessoas de uma forma artificial, sobretudo para grupos. Num nível abaixo, estão as práticas de "risco elevado", que afetam sobretudo as três áreas: saúde, segurança e direitos fundamentais. Por fim, há o "último layer" de práticas que não são proibidas e podem ser desenvolvidas com alguma liberdade, como jogos. Para as áreas de risco elevado, o regulamento impõe uma série de regras baseadas em princípios como a segurança, transparência, explicabilidade e responsabilidade. Isto, alertou Malaquias, implica um "grande investimento" por parte dos bancos, nomeadamente no conhecimento, pois terão de "saber explicar porque é que um determinado sistema automático chega a um determinado resultado", bem como "saber corrigir os resultados enviesados destes processos automáticos". O objetivo é garantir um "sistema de controle muito robusto" para evitar consequências negativas para clientes e bancos.
"Servir os clientes"
Afonso Fuzeta Eça, do BPI, reforçou a perspetiva dos bancos como "adopters" de tecnologia, em vez de fabricantes. O papel fundamental dos bancos, recordou Fuzeta Eça, é "servir os seus clientes". Assim, a discussão sobre a IA deve centrar-se em "como é que isto melhor serve os clientes", seja através de recomendações, proteção ou um atendimento mais rápido e eficaz. A regulação, neste contexto, surge como uma "camada de proteção" para os clientes na aplicação destas ferramentas.
Madalena Talone, da CGD, acrescentou que a sustentabilidade dos bancos passa também pela modernização e digitalização, o que o regulador acompanha. A experiência da banca com a gestão de dados financeiros e de clientes, com princípios de governance e mecanismos de qualidade de dados sofisticados, preparou o caminho para a IA generativa, permitindo uma abordagem responsável.
O impacto da IA no mercado de trabalho foi outro ponto de debate. Pedro Ferreira Malaquias procurou "desmistificar" o "papão da inteligência artificial", sugerindo que, embora possa levar a uma "alteração se calhar estrutural" em muitos setores, incluindo a banca, não deverá "destruir muito o emprego". Em vez disso, o trabalho será "redirecionado para aprender a trabalhar com a inteligência artificial e ter a aproveitar a inteligência artificial e pôr isso ao serviço dos bancos, dos clientes, de todos os stakeholders".
A IA pode mesmo "humanizar"
Fuzeta Eça corroborou esta visão, referindo que a introdução de ferramentas como o Copilot, da Microsoft, que já está a ser adotado por muitas organizações, incluindo o BPI, "vai implicar mudança" na forma como as pessoas trabalham. No entanto, a ideia é utilizar a IA para "acabar com tarefas repetitivas, com coisas com menor valor acrescentado e conseguir focar as nossas pessoas em coisas mais interessantes". A grande questão, segundo Fuzeta Eça, é como "utilizar a inteligência artificial para humanizar mais as coisas".
Um exemplo prático da IA a melhorar processos foi partilhado por Madalena Talone: a leitura das reclamações de clientes. Com a IA, a CGD consegue agora ler e sistematizar todas as reclamações, algo que seria impossível com apenas uma equipa humana, permitindo identificar "oportunidades de melhoria muito concreta" e gerar uma "lista de ações muito mais concreta e granular" para rever processos. As potencialidades da IA, como a deteção de fraudes e os reportings para reguladores, são já uma realidade nos bancos.
Pedro Ferreira Malaquias alertou ainda para os riscos das "blackboxes", onde o controlo da interação entre as diferentes camadas neurais se torna difícil para o ser humano, levantando questões sobre quem cobre estes riscos, uma vez que os seguradores ainda não conseguem calculá-los.
A mesa de debate deixou claro que a IA no setor financeiro é um caminho sem volta, mas um caminho inevitável, mas com cautela, regulação e um foco inabalável no valor que pode trazer aos clientes e às próprias instituições.